terça-feira, 9 de dezembro de 2008

Das formas do ardido.

Pessimismos, alardes,
blogs trans-agressivos e Mainardis.

Ao ler alguns de meus textos, talvez, a opção mais óbvia seja a inclinação crítica para julgá-los como radicais. É ululante. Tais como aqueles esporros periodistas dados por Diogo Mainardi na revista Veja onde coloca o presidente na privada, os discursos arrasadores dos apresentadores das Tribunas do Povo nas televisões ou enfrentando os naufrágios da nação no discurso cáspio de Arnaldo Jabor e tantos, tantos outros. Nietzsche, em sua compilação de Ecce Homo, divagando sobre seus escritos aforistas em Menschliches, Allzumenschliches – Humano, Demasiado Humano - , relata que não vai ser mais um espanta moscas, não quer, não precisa, e, no entanto não se contenta em deixar de fazê-lo em uma só linha antes, durante ou depois.

Serão mágoas, carências, afetações, recalques, perturbações? Será que a professora na infância deixou de castigo na frente de todo mundo ou será que é mal amado? Será que é amargo ou será que é infeliz?
Qual é a do chocolate amargo? Café combina com muito doce (ou com algum)? Precisa adoçar o suco de laranja? Se a metáfora gastronômica for falaz, uso outra: você aperta uma mão suja?

Vemos que tudo ou qualquer coisa nesse mundo tem o seu lugar. Não significa que qualquer tudo pode caber no meu lugar. As vezes o meu grande lugar são entrelinhas, arrasadoras ou adulantes. As vezes são duas toneladas, outras peso-pena. Depende.

Existe genialidade na indústria cultural para as massas. Mas também é possível perguntar se essa indústria cultural existe. Será que toda produção cultural não é industrial sob as mesmas matrizes culturais. Matrizes culturais? O processo de subjetivação que decorre dos produtos de massa tem um rosto esquisito para mim. Não disse odioso. As vezes se gosta mesmo do esquisito. Ama-se. Outras vezes se acha patético.

Enquanto o axé toca por ali longe de mim, me devoto a outras alegrias, talvez clandestinidades. De repente, um cachimbo. Ôpa, uma bola na boca do cachorro.

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

A Dama da América Latina


















Sob um poncho vermelho solta os braços,
lentamente, para abrir o estrondo da voz.

Mercedes Sosa em apresentações pelo Brasil, nesta seara dos confins de 2008 é algo para não se perder. Nunca. Tem que gostar da voz telúrica, enrouquecida e calorosa da musa de 73 anos.
O espírito da América Latina em vibratos profundos e cortantes. Por trás de sua aparição, a América Latina sujeito, experiente com a carga de quem já passou por marchas de sangue e glórias. Marchas de sangre de los etudiantes. Histórias que o Brasil conhece pouco, logo que, sempre se mantém longe e absorto em outros caos.


Aqui em Salvador, no Teatro Castro Alves, com uma platéia barulhenta - não há preparação para aquilo que ressoará como trovão – a apresentação litúrgica, sacra para o tambor de Mercedes, no ribombo do canto em catársico texto. Alegre é lúgubre.
O baiano fala muito, barulha demais, sem pretexto, exórdio, sem paz. Trajam, as mulheres, vestidos horríveis cheios de lantejoulas e se perfumam para o nada. O calor desgraçado do TCA sinaliza a necessidade do declínio que se aproxima. E em minha cabeça Mercedes começa a cantar. A espera também é nada. O peso é a comunidade baiana. Mas a Dama virá. Guiada por dois acólitos vem sentar-se em sua cadeira amplamente ovacionada depois de 15 anos sem vir a Bahia. Finalmente os soteropolitanos se calam. Senta serena e dá-nos as graças de estar em Salvador da Bahia. Abre o canto e depois de umas 2 canções larga Gracias a La Vida e a platéia acolhe saindo do sufoco de uma década e meia.Canta María Elena Walsh, Violeta Parra, Ariel Ramirez, Armando Tejada Gómez Y César Isella até recair numa das melhores coisas do cancioneiro brasileiro: Milton Nascimento mesmo.

Se va enredando, enredando
Como en el muro la hiedra
Y va brotando, brotando
Como el musguito en la piedra
Como el musguito en la piedra, ay si, si, si.
Volver a Los 17 – Violeta Parra

Não sei o quanto cansativo é ler sobre Mercedes a partir do que sinto. Mas é chato universalizar minhas sensações e descrever de acordo com a possível transparência de todos.
Eu estive dentro de uma redoma naquele canto latino, na verdade sempre estou quando a ouço.
Não temos vozes femininas expressivas no Brasil e a maioria das cantoras, cantadeiras e cantrizes parecem desconhecer o que seja o ofício. A pulsação que dá a voz o conceito,
a metafísica. Entre grunhidos e solfejinhos afinados, ouvimos, em grande parte, sons de barzinhos em vozes resquícios bossanovistas e modismos “mais nada novo sob o sol”. Desculpem. Entre estas estão Adriana Maciel, Paula Toller, Adriana Calcanhoto, Zizi Possi, Rosa Passos e o clubinho musical de categoria bairrista baiano sem sal de Márcia Castro, Vânia Abreu, Mariene de Castro e sem número de iguais. Desculpem. E as vozes banda baile de Ivete, Cláudia Leite, Daniela Mercury - carretel de mulheres estandarte de pernões que só cantam porque tem pernas bonitas pois se tivessem cambitos iriam arejar na ninguendade. Tão diferentes das vozes universais e apoteóticas das nem tão bonitas Dulce Pontes, Maria João, Mercedes Sosa e Edith Piaf. Elis já morreu. Ao posto sobejam Maria Betânia e Mônica Salmaso. A filha da Elis é uma piada marqueteira. Todas vozes bonitinhas, mas cantoras?


O poncho rubro que reveste a Mercedes ressalta um armorial vivo e é preciso entender porque trata-se de uma Dama da América Latina. La Negra, como foi nomeada pelos argentinos, por conta dos cabelos negros e escorridos, é a expressão artística da abolição contra as tiranias que mancharam a América em meados do séc XX. Seu repertório é ideológico. Repugna o imperialismo norte-americano (não a cultura americana), consumismo e as diferenças sociais massacrantes. La Negra colocou em seus palcos os caminhos peronistas que aderiu durante toda a vida com canções imponentes que dizem aos governos para viver os interesses do povo, em que só existe uma classe de homem: os que trabalham. Seus braços são as forças sociais pela e para a sociedade e os únicos privilegiados são as crianças.


Meu ceticismo e radicalidade, exagerados, justificam-se pela penumbra contralto sustentada no tambor e força musical daquela Dama. Não tenho outra expectativa senão contradizer meu país e suas aberrações artísticas de auditório, onde trafegam parcas expressões viscerais. Paro por aqui. Nada mais é possível de ser dito pois meu texto ficou trancando. Deve ser pela decepção. Deixe-me ver o que tem para ver na cidade por esses dias. Não melhor não, melhor ficar aqui no meu canto, em minha casa pinicando ao violão Canción para Carito. Vai que dissolvo meu desgosto porquanto meu recanto vira uma fenda castelhana.

Andando solo
Bajo la llovizna gris
Fingiendo duro
Que tu vida fue de aqui
Por que cambiaste un mar de gente
Por donde gobierna la flor
Mira que el rio
Nunca regalo el color.
Canción para Carito





segunda-feira, 6 de outubro de 2008

Dércio Marques. Menestrel das matas e das cidades.

Ouça a mata cantar. Pela garganta de um fauno cantador gritam os anseios mais densos que confundem os elos humanos, os desejos, as crenças espirituais. Há algo de um índio antigo em suas orquestrações. Ele é puro, desconhecido, inusitado. Nunca tímido, mas silencioso e pensador. Pensa ali suas harmonias e solfejos. Rico despoja tudo que tem para simplesmente nada ter, senão a viagem. A desarrumação, o caos e as malas prontas. Para ir, vir e devir.
Foto: Dércio Marques 1974

Dércio Marques é uma arqueologia de sensações musicais para além das notas enfadonhas. Existencialista: canta, de modo afetivo o homem em suas relações humanas e sociais, apropriando-se, de acordo com cada fase da sua história, dos tesouros que pirateia por aí. Vive envolvido numa performance errante na vida artística. Consumido na referência imediata de um estilo de vida inusitado, cigano para tantas cidades.

Suas cercanias artísticas foram constituídas por nomes célebres da música latino-americana, como Mercedes Sosa e Violeta Parra, e de muitos outros cantadores do Brasil e América Latina. Certo dia rompera com o Brasil face ao desgosto que aqui se encontrava com tanta bossa-nova e Iê-iê-iês. De certo que voltaria atravessado por ponchos e charangos. Quando voltou não se sabia direito e isso foi pelos idos de 1974 quando conheceu Elomar Figueira Mello. O canto vaqueiro, territorialista, nativo de Elomar o reconduziu a uma nova locanda. Para ele faltava esse telúrico pois a bossa se empunha como movimento para certa debilidade naquela época, pois era mais parecido como proposta das massas elitistas cariocas, paulistanas e baianas em acordo com o consumo imediato.

Dércio, eu vejo nele um menestrel, um trovador clássico – como eu sou também – aquele típico trovador que canta trovas, troveiro, rapsodo menestrel. Um músico de ponta, um ouvido fantástico, uma voz afinadíssima, um timbre belíssimo, uma postura de palco teatral, naturalmente teatral. Ele não faz força para fazer nada, tudo o que ele faz no palco é bonito, aquele jeitão dele, fazendo o que um grande artista faz, o mesmo que centra o espetáculo. Às vezes ele chega assim, completo, muito polivalente, músico. É costume ele andar por aí feito um cigano, e esquecendo os instrumentos no palco, tem dez instrumentos, larga um, pega outro, desafina uma corda, muda pra outra. Põe na afinação que quer, é um riachão, um cebolão, pega a viola de dez cordas, depois pega o violão de concerto, vai pro charango, um bandolim, depois bate no tambor e vai embora viajando, no concerto não pára. Elomar Figueira Mello

Meu convívio com Dércio data de meados do ano 2000. Desde essa data não entendi mais nada. E até hoje preciso parar delicadamente para assimilar aos poucos o que sua poesia e música pretendem nessa era de ansiedades. Seu ouvido musical apurado e sagrado explora uma música transcendente, mística. Em suas canções, ou nas que interpreta, fala de seres carnais, espirituais e das trocas afetivas entre os juntos ou desligados.

Meu amor adeus
Tem cuidado
Se a dor é um espinho
Que espeta sozinho
Do outro lado
Meu bem desvairado
Tão aflito
Se a dor é um dó
Que desfaz um nó
E desata um grito
Um mal olhado
Um mal pecado
E a saudade é uma espera
É uma aflição
Se é primavera
É um fim de outono
Um tempo morno
É quase verão
Em pleno inverno
É um abandono
Por que não me vês, maresia
Se a dor é um ciúme
Que espalha perfume
E me agonia [...]
(MARQUES, 1999, CD 1, faixa 1)

“Por que não me vês” do compositor Fausto. Gravada por Dércio Marques no álbum duplo Cantigas de Abraçar.

Em outra face canta as desigualdades sociais e as angústias que acompanham o homem esmagado pelos poderes do mundo do trabalho e passeia através de um texto denso, coligido de poetas como Atahualpa Yupanqui, Elomar e José Maria Giroldo.

Dércio é um artesão musical: “constrói” cada som em função da necessidade artística do projeto. Muitas de suas obras musicais foram feitas artesanalmente, ao longo de vários anos, e uma se torna ontológica: “Segredos Vegetais”. É uma obra finíssima e cuidadosa composta durante doze anos e levou mais quatro para ser gravada. É uma composição musical criada com um acervo sonoro pluralizado com registros da natureza e uma diversidade de instrumentos musicais. Este trabalho é constituído, segundo Dércio, com o objetivo de formar um ambiente temático que sugerisse os “cânticos mais profundos da natureza” e repressentasse a aura das matas e suas entidades espirituais.

Enquanto nos exprememos entre sintonias dialógicas das rádios e i-pod de oitocentos mil gigas com quarenta e cinco milhões de músicas em mp3, é possível que uma só canção de Dércio não consiga ocupar de uma só vez o coração humano ao mesmo tempo que seja possível preencher todo o seu afeto. Caso resolva adentrar nessas canções não espere nada ecológico, pois a floresta dos sons de Dércio vai pensar que é você que precisa de cuidados e proteção ambiental. Comece espalhando os segredos: Segredos Vegetais.

terça-feira, 19 de agosto de 2008

Brasil versão 3.1


A escalada do Brasil a provável ascensão ao primeiro mundo, conforme algumas especulações dos clippings midiáticos, não passa de mero factóide. O que existe, no máximo, se aprimora numa versão re-configurada de terceiro mundo. Talvez adentremos num modelo avançado do programa mais tumultuado e bem sucedido dos governos: A Desigualdade Social.

O quanto representa a América Latina na discussão contemporânea mundial? Senão pelas FARCS, Floresta Amazônica, caos econômico argentino, operário Lula no poder, a fogueira do inferno ardendo no Rio de Janeiro e o performático ditadorzinho meia-boca da Venezuela, de que vale a mídia do continente? O que tem para ser mostrado ao mundo?

Vamos ao BRIC. A China tem duas coisas o crescimento econômico cavalar e as olimpíadas de 2008. A importância da China é injusta ao lado do Brasil no BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China). Juntos, estes países, possuem o equivalente ao PIB dos EUA[1]. Caso retrate as vitrines dos outros, Rússia e Índia, existem sentenças ainda mais inciumadoras para o País do Futebol. O que o Brasil está fazendo na lista do BRIC? Ah, são os números! Números que aparentemente impressionam, mas com quem estão os dígitos? Mais de 60 milhões de brasileiros desconhecem os três dígitos. O resto não saiu desses. Resta uma questão: que é crescimento? O Brasil é realmente um país que cresce? Emergente?

Recentemente as notícias febris são: “Os novos milionários brasileiros[2]”, “A evolução capital das bolsas” e “O monstro da inflação que ameaça cuspir o fogo da remarcação de preços nas prateleiras de consumo”, ao mesmo tempo que o mês de junho foi duro para as ações da Petrobrás, Vale e Banco do Brasil. Os trombadinhas que roubam essas bolsas vêm de fora. Mas o Brasil está num estado crítico mesmo, pouco tempo atrás se propagava à independência em Petróleo, mas os preços das bombas continuam subindo e as inteligências internacionais falam do etanol para substituir a este. O próprio Brasil acaba de incrementar ações de investimento nas plantações de cana[3]. Inexplicável.

Vivos, Cazuza e Renato Russo entrariam para o congresso nacional, tal como Clodovil. Pelo menos só por chacota e rebeldia. Este último parece exercer um mandato sensato, ao menos polêmico já que pleiteia uma votação para reduzir o número de deputados na casa. É a piada pronta.

O congresso nacional infesta-se de piratas. Mas a política é assim mesmo, suja, imperfeita e cospe no chão. A mesma política que insiste em resolver os problemas da corrupção com CPI´s que não dão em nada e servem de consolo para o gado no pasto. E vamos assim pastando com a conversa mole deles e achando que estamos crescendo e desenvolvendo, na embarcação gerundista nas balsas do progresso rumo ao mundo versão 1.0. Talvez o primeiro em projeções fajutas, seguidos pelo resto de mentiras venezuelanas, colombianas e castristas. Aqui o que se fala não se escreve e o que se escreve não se lê porque o povo é analfabeto. A grande massa sabe nada de nada. E o nosso país, candidato a cargos e representações nos grupos dos países do primeiro mundo possui uma população alheia a tudo. Alheia aos seus direitos, à alfabetização, noções básicas de saúde, constituição familiar, formação ocupacional e dos diversos tipos de inclusão social. Só sabe receita de bolo.

Mas outra coisa imbecil é o conceito de país de primeiro mundo. Esses também são os grandes fraudadores da humanidade, são os mais controladores, poluidores e atomicamente perigosos. E os de segundo? Desmontada a guerra-fria restou esse vácuo classificativo, do qual nada mais se espera, senão a declinação aos poderes de consumo. Mesmo se for o de armas.

O Brasil é tão subdesenvolvido que nem terrorista tem. Aliás, tem. Estão todos no poder e detonam as bombas na imprensa e no povo.

Fora o humor negro, ainda resta a América Latina. Melhor que o Brasil, em certos status, a Argentina ainda resvala em cinco prêmios Nobel[4]. Viva o Brasil com o seu Prêmio Jabuti[5] em que megas-editoras tomaram conta da porra toda e não dão nenhum espaço para produções independentes. Vendilhões das Academias de Letras.
PS: Não podemos ainda nos esquecer dos vinhos chilenos e das ruínas de Machu Picchu no Peru. Vitrines mundiais. 800 mil turistas por ano visitam este patrimônio histórica da humanidade.

Bom mesmo será a competição olímpica chinesa que trará ao mundo as cenas estético-pirotécnicas de um gigante asiático que promete para um futuro não muito distante propor uma nova classificação de mundo. Talvez mundo versão 1.3. Com seus um bilhão e trezentos milhões de habitantes, revolucionando as forças mundiais. Será engraçado o chinês instrumental substituindo o inglês nas escolas. Visagem? Só sabemos muito pouco do idioma chinês porque até hoje esse país é fechado para a inclusão digital.

Estamos longe de sermos sujeitos ordinários de primeira grandeza. Precisamos enxergar nossas situações profundas de aparecimento e continuísmo. Somos um agrupamento equivocado, com alguns poucos representantes de causas reais.

É impossível construir uma nação perfumada e a motivação nunca será essa. Ao menos é preciso que as coisas gritantes encontrem o cemitério, que os marginais do poder se despeçam do planeta e dêem lugar a um corpo novo, mais consciente, menos pasteurizado ou carinhoso ou indolente. Menos swan e mais status para um povo que amarga e cujo número de representação é o zero à esquerda no país que se re-descobre na sua versão aprimorada de caos, discrepância e miséria. Mais inteligência e menos tentativa-e-erro.

Na virada da maré mundial, em que centros de poder se reinventam e novos candidatos avançam, caso o Brasil instale essa versão Mundo 1.0 pode apostar: não vai funcionar, vai dar pau.

[1] http://pt.wikipedia.org/wiki/BRIC
[2] http://www1.folha.uol.com.br/folha/dinheiro/ult91u362928.shtml
[3]http://www.amazonia.desenvolvimento.gov.br/index.php?option=com_content&task=blogcategory&id=1&Itemid=59&limit=9&limitstart=9
[4] http://www.argentina.ar/_pt/ciencia-e-educacao/C281-nobeles-argentinos.php?idioma_sel=pt
[5] http://www.premiojabuti.com.br/BR/index.php

sexta-feira, 30 de maio de 2008

Fake Show


Texto publicado em 2005 - e agora revisado - no portal xiscando.com direcionado ao corpo discente de alunos de comunicação. O Xiscando é um blog que reflete sobre o mundo da propaganda e mostra o que acontece de mais atual no ambiente do marketing e da publicidade.


A propaganda divertida dos estudantes não vai dar muito resultado. Um número bastante razoável de estudantes ingressa – de modo fácil – numa faculdade com o propósito único: curtir a vida desesperadamente. O mesmo desespero os toma por completo diante do fato de egressar num mercado restrito, mal remunerado e exigente. Vamos ao ponto? Pois bem, há certo tempo atrás, a propaganda criativa pertencia a uns poucos malucos de hábitos noturnos, irreverentes e desachados na vida. Arquitetos, artistas plásticos, jornalistas e até alguns economistas se inscreveram na arte de publicar o negócio dos outros. E o faziam, naquela época, a peso de dólar. Tempos áureos? Não. A propaganda nunca movimentou tanto dinheiro quanto agora. Mas ao passo que a propaganda cresce os salários e remunerações dos valores dos serviços diminuem. Isso não é uma progressão aritmética ou geométrica, é, de fato, uma depressão geo-arit-mega-hiper-eça-métrica. A propaganda regionalizada nos pequenos centros amarga resultado ainda pior: muitos cursos, poucas agências, veículos caros e menos ainda coesão operária. Êta povinho desunido esses aventureiros publicitários. Para se ter uma idéia, nossa classe, aqui na Bahia, é vinculada a um sindicato que pertence aos radialistas. Nada contra os amigos radialistas, ótimas pessoas, excelente profissão. Mas é que uma coisa é uma coisa e outra...
Eu fico admirado com as falas de alguns alunos iniciantes nas searas propagandistas. Eu espremo, espremo, espremo e, no geral, apenas percebo um grande interesse: nota das avaliações e prazo de entrega dos trabalhos. Isso piorou bastante depois que o universo clueless entrou para a propaganda. Os corredores das faculdades não pertencem mais aos bichos-grilo de butique, roqueiros, neo-filósofos, artistas plásticos, militantes políticos, articuladores e inventivos. Pertencem atualmente, em grande parte, à galera do batom, da cópia, dos ambulantes, dos baladeiros, dos sex-appeals que ficam desfilando seus corpos esculpidos de deuses e deusas gregos. Tem aqueles que também são viciados em novas tecnologias e só vivem pra isso, afinal pra que serve tanto recurso no celular senão para que eu ocupe meu tempo. Vejo muita gente com tempo para 2, 3, 4 horas de malhação. Tri-atletas! Ops, será que estão na atividade certa? Vejo estudantes virando noite em baladas, e, nenhuma noite virada confabulando aquela campanha que foi passada como job lá no estágio. Já chegam, geralmente, nos estágios com cara de travesseiro, da mesma forma na faculdade. Péssimo. Esses “especialistas” acham ruim o fax. Mas será que sabem fazer algo melhor?
Outro dia um conhecido meu saiu da Propeg, estava lá há seis anos. Trabalhava como Diretor de Arte. Até hoje não entende por que o salário dele não aumentou neste período e também porque o tinham dispensado. Perguntei-lhe: “Zé, você sabe o que é ars nova? Sabe quem foi Jean Michel-Basquiat?”. Obviamente o nome dele não é Zé, e muito menos sabia o que significava esta modalidade artística surgida com o Renascimento e esse ícone dionisíaco da Pop Art. Como disse Bruno Tolentino: estamos cheios de inteleco-teco-teleco-tectuais. Sabem a execução de uma quebradeira, mas nenhuma que impressione o chefe, o diretor, o professor. Minhas críticas não são às pessoas, mas ao desleixo e à indiferença. A atividade quase vegetativa em relação à profissão escolhida.
Desde minha época de estudante percebo uma coisa: quem manda bem na faculdade, continua mandando fora dela. Outros assumiram a moda dos cruzeiros e estão a ver navios. Talvez porque ficaram com medo da água e não aprenderam a nadar. Metáforas à parte, ainda dá tempo de não perder o ritmo. Dizer que a propaganda é ruim ou mente é algo tão fácil quanto não trabalhar por realizar a diferença. Ela tem suas perturbações: exige sacadas rápidas, inteligência, bagagem e conhecimento, é aglutinadora, incita, comove, influencia. Mas é uma atividade como poucas que proporciona certas estesias – se não sabe o que significa “estesia” um Houaiss cabe bem agora. Agora, se não sabe o que é um Houaiss, me perdoe, mas desista de ler agora esse texto e vá bater um baba.
E são algumas das relações promovidas pela propaganda que ajudam a fazer o cotidiano das pessoas um lugar mais divertido pra se viver, embora ela traga a sua mentira e mascare a realidade a custa de ideais muito duros. Afinal, tem coisa pior do que desejar algo e não poder ter? Mas, onde está o lugar ao sol para aqueles que ralam, e ralam muito? Pode tardar mas não falha, há sempre um véu de oportunidade a ser descortinado quando menos se espera – mas este lugar existe apenas para aqueles que tem algo a dizer e a fazer. E nesse estradar vale a pena alimentar o ego e a cabeça. O primeiro para que você acredite em si, o segundo para que você mostre o porquê de se acreditar. Lembre-se que um trabalho braçal faz um estivador e não um formador de opinião. Portanto pare de ficar levando e trazendo recado no estágio, na faculdade, no trabalho. Procure agir, faça de verdade, pense, reflita, leia, não devore apenas o cotidiano do Uol e do Orkut, revire também o mundo dos impressos. Pode ser um outro universo para você, mas existe vida lá. No mais saiba se colocar porque o show deve continuar, e tão melhor ele será se for feito de verdade. Sem farsas.

quinta-feira, 22 de maio de 2008

Mil sertões em Juraci Dórea


Minha terra não é moça,
Não veste vestido de renda,
Não tem argola na orelha.
Minha terra é menino,
É um vaqueirinho
Vestido de couro.

Eurico Alves – 1928

Em casa de Juraci viramos terracota. Uma parcimônia para virginianos. Nossos gestos ficam elegantes e logo parecemos recém-saídos de gravuras, iluminados de ações delicadas. Fluem entre as cenas do seu atelier cobrinhas-lagartos, peixes e musas fugidias. Outras peças mostram vaqueiros, cantadores, lembranças de cordéis. Na mesa vinho bom, queijos e pães fartos sem, contudo, fazer-nos esquecidos do maravilhoso salmão e bacalhau postos, logo depois, no mar daquela mesa. A prenda é da mulher: a Selma. O fundo da casa, átrio fastuoso, fica de frente ao Atelier do ilustrador. E estamos assentados eu, uma sereia e Juraci com mais alguns convivas, bons falantes por sinal – quando falavam. Os sabores dividiam ações e calavam a voz.

Feira de Santana fica a cento e poucos quilômetros de Salvador e recebe esse nome porque a cidade cresceu de uma antiga encruzilhada de rotas comerciais. Mas ainda é lugar de escambos alternativos ou clandestinos. Antes de se chegar a Salvador, fora algumas trilhas perdidas por aí, chega-se primeiro à Feira de quinhentos e pouco mil habitantes. Juraci Dórea vem da Feira de 1944 e já viu muita coisa mudar nessa vida. É artista de décadas com um acervo raro e o passaporte de diversas nações que receberam suas obras em exposições e bienais, principalmente no Velho Mundo. O que fica renitente, desde aquela data, são os humildes vaqueiros e as lamparinas de óleo das gravuras. Eleva a estética das Xilogravuras reproduzindo outro canal de desenho, às vezes mais asseado e caricato. Mas lembra a Xilo. Pra mim uma ars nova de sinestesias: o cheiro das coisas apenas olhando. Fumaça de lamparina, o couro quando molha, aroma da caatinga e o ar quente reproduzindo cores do céu. Mesmo apesar da peça ser em branco e preto. Às vezes tem outra cor ou é colorida.

Meu primeiro contato com a obra de Juraci veio em 2004 pelo caderno-livro do LP “O Auto da Catingueira” de Elomar Figueira Mello, de 1984. Juraci autora as imagens da capa. Em seguida, a convite de Simone Guerreiro, fiz a direção de arte do seu livro sobre o cantador Elomar utilizando algumas de suas ilustrações. A peça caiu muito bem na crítica de todos os autores envolvidos, o que foi suficiente. Não é, de certa forma, difícil produzir algo bom possuindo esses dois cavaleiros: Juraci e Elomar. Dois Don Quijotes figurados no campo branco[1] do Brasil. E Simone Guerreiro arremata o texto.

Amontoados de telas e uma grande mesa sustentam várias coisas no seu atelier. Livros, cadernos, pinturas, canetas e em outra bancada o computador. A máquina organiza sua vida laboriosa com as planilhas de quadros e respectivos preços. Algo importante para seu marketing mas a vida de suas telas não parece nada com isso. É pobre, simples, festeira e generosa. Juraci é uma generosidade ambulante. Oferta o que é possível, e o que não é, fica justamente por conta do pão de cada dia, da reforma da casa, das criaturas filhos que tem que prover. Ah se a vida fosse de graça, Juraci seria pão e circo. Ganhei de presente, por sinal, neste dia, dois livros. Um sobre ele – "Memória em Movimento. O sertão na Arte de Juraci Dórea" - e outro sobre um poeta de Feira de Santa – "A Poesia de Eurico Alves" – ambos de Rita Olivieri-Godet . Quando recitei “Minha Terra”, era tão bonito que, fiquei sem graça. Foi logo depois da chuva quando migramos para dentro do Atelier. Eurico está memorizado por esta escritora que permeia o mundo mexendo entre mortos e vivos, mas todos próximos.

Aguardo novos ares e encontros, da próxima vez com o agrado de canções. É algo que não dá para separar daquela ambiência dos tijolinhos aparentes da casa de Juraci do frescor da fenda entre o fundo da casa e o atelier e o calor humano de sua tenda artística. É algo bem sabido pelo próprio Elomar, Xangai, Simone e tantos outros. Mas levarei violão e canções, como quem leva tinta e pincel pra fazer umas telas por lá. Lá no fundo daqueles mil sertões, que é a casa de Juraci Dórea.

[1] Caatinga, sertão.

domingo, 11 de maio de 2008

A Deposição do Folclore

Não há coisa mais horripilante do que fazer a apologia da cultura popular, ou da cultura proletária ou sabe-se lá o que desta natureza. Há processos de singularização em práticas determinadas, e há procedimentos de reapropriação, de recuperação, operados pelos diferentes sistemas capitalísticos. Félix Guattari

Ensejo
Perdoem-me inicialmente pela gramatologia. Esse lagar densificado de termos, esse átrio imenso de falas poéticas, acadêmicas e desestruturadas, território de tantas expressões inventadas, e hora, melhor aproveitadas.

Os estudos culturais tornaram-se alvos de complexos ataques e debates intensos a cerca de conceitos que propagam idéias e defendem causas como se essas fossem tramas religiosas. O que proponho nesse pequeno texto não é isso. Ofereço, pelo contrário, certa dessacralização de termos, retirando da escravidão objetos e assuntos esmagados por determinadas menções e falas populares. Alguns desses conceitos estão enroscados de tal forma nas produções artísticas e em seus autores que a simples menção de si mesmos, ou representação, em relação a esses termos já estabelece um circuito fechado. Dizer-se ator de algo “proveniente de”, “essencial de” ou “pertencente a” traz precipitada territorialização e em seguida restrições desnecessárias.

Por exemplo, muito se fala em música regional. O inscrito “Regional” é um território complexo, ficcioso, nas palavras do sociólogo Pierre Bourdier, um espaço destinado a uma falcatrua dos espaços. A etimologia da palavra região (regio), tal como a descreve Emile Benveniste
[1], conduz a princípio da divisão, ato mágico, quer dizer, propriamente social, de diacrisis que introduz por decreto uma descontinuidade decisória na continuidade natural. Dessa forma, é possível retratar até uma expressão artística urbana como Regional. Tal definição de música Regional tornou-se lugar comum no ambiente das mídias. É quase uma luta entre identidades étnicas ou propriedades (estigmas ou emblemas) ligadas às origens através do lugar de origem dos sinais duradouros que lhes são correlativos, como sotaque, costumes, gestos, etc. São poderes simbólicos e tentativas de demarcações invisíveis. Mas então o que existe? Apenas expressões artísticas de culturas específicas. Muitas delas tem títulos interessantíssimos, tais como Mangue Beach, Cantoria Nordestina, Nova Cantoria, Música Caipira, etc. Assim como Bossa-nova é Bossa-nova. Daí, em grande parte, o regional é considerado como tudo aquilo que está fora do âmbito dos circuitos dos grandes centros ou cidades e é disponível apenas em mídias alternativas ou em iniciativas de apoios governamentais, como projetos e eventos de patrocínio a culturas artísticas e suas variadas manifestações.

Outro desconforto gira em torno do termo Folclore e tudo que este agrega. São complicados certos conceitos e práticas consideradas como “cultura nacional”, folclore, identidades, música popular, música regional e de raiz na identificação dos artistas e suas culturas artísticas. São todos termos etnocêntricos e desvirtuados da cena viva. Folclore por exemplo é uma invenção reacionária e valorativa. Um dos que mais tentam salvar o termo é Antônio Gramsci (filósofo e comunista) com abordagens fluentes, mas até então, para mim, não reagentes.
Diante de tais práticas, não é incomum observar comportamentos etnocêntricos que amplificam o grau da cultura-valor e expõem as expressões artísticas provenientes de ambientes diversos a um nonsense colonial (BHABHA).

O termo "folclore" compreende valores e noções que comprometem elementos importantes da alteridade e que são contraditórios na representação do objeto. Um desses principais problemas está na exotização das culturas. As idéias ou aspectos conceituais do folclore tecem conjunto de valores que servem como cenário para esquisitismos e exotismos, os quais, por sua vez, deixam rastros de falsas evidências sobre aspectos intrínsecos das culturas artísticas, principalmente em estudos que investigam tais manifestações. Segundo Renato Ortiz[2], configura-se em situação incômoda, e se agrava quando se sabe da preferência dos folcloristas pelo pitoresco, no qual os interesses são conduzidos para a dimensão do desconhecido, do bizarro, do curioso – “fantasmas, magias, tradições longínquas, culturas perdidas, tribos primitivas” (ORTIZ). Para o pesquisador, o folclore consiste numa “ciência menor”, que se articula à sombra de ciências legítimas tais como a sociologia, antropologia e história.

Comumente, os pontos de vista folclóricos explorados pelo conjunto social de produções culturais e da mídia atribuem valores e juízos, em grande parte, em detrimento de referências culturais ocidentais e etnocêntricas. Nesse sentido, o folclore define, segundo Canclini, os processos culturais como atividades intelectuais, restritivos a certas elites, em que, a partir de visões iluministas, exaltaram os sentimentos e as formas populares de expressão em oposição ao cosmopolitismo da literatura clássica; evidenciaram as diferenças, o valor do local, em oposição ao desprezo do pensamento clássico pelo “irracional”; trouxeram aos olhares hábitos exóticos de outros povos e de camponeses (CANCLINI). O conjunto desses argumentos termina fazendo do folclore uma disciplina que se generaliza nas expressões subalternas, orientado sob os auspícios do tato colonizador, com padrões imperialistas de enxergar as informações artísticas e culturais dos grupos rotulados como folclóricos. Uma espécie de visão do grande caçador branco sobre os costumes que se mantém quase sempre de acordo com uma tradição. O folclore trabalha segundo a concepção de “grupos de elite” que buscam despertar o povo e iluminá-lo em sua ignorância. Dessa forma, existe algo sistêmico tal como uma máquina que retroalimenta o âmbito ingênuo da cultura popular ou de raiz

O cantador Elomar, por exemplo, está incutido em acervos ou fendas culturais que consideram origens interioranas, rurais – telúricas –, ancestrais, mas não somente. Traz universo próprio, em que se mantêm expressões e costumes sobreviventes de uma memória, mas que se posiciona, na atualidade, ligada a outros movimentos artísticos musicais, temalógicos e à indústria cultural (Elomar comercializa CD´s). Sua obra ocupa lugar específico, constituído por outros artistas - cantadores - atuantes, com características peculiares que se retroalimentam. Seus atributos culturais e artísticos não podem entrar em comparação com outras manifestações, colocando-se à margem, no plano de vítimas daqueles não acolhidos por grupos que digladiam por espaços na mídia. Elomar pertence ao movimento da "Nova" Cantoria e têm articulação com culturas capitalísticas, novas mídias, formas de produção e criação. A diferença é que ele não altera seus ideais. Ele mantém sua produção cultural preferindo vencer limites restritivos da própria indústria cultural e dos fenômenos explosivos da cultura artística de massa. Enquanto isso, nos bastidores da cultura, as concepções folclóricas ou popularescas tendem a formar posicionamentos românticos e equivocados a respeito do cenário Elomariano e dos representantes da "Nova" Cantoria, na construção de um resgate do espírito antiquário (ORTIZ) e formulações reacionárias a respeito do sujeito que ali se inscreve.

O povo é “resgatado”, mas não conhecido (CANCLINI).

A intenção de divulgar esses ensaios atende a um campo dialogal desse tempo em que algumas comunidades insistem em roteirizar a dinâmica cultural dos povos e suas manifestações artísticas. Essas estruturas giram de acordo com os regimes periodistas e equivocados das análises culturais, principalmente as jornalísticas. A intenção é estender a conversação e nunca fechar os sistemas, nem possuir a certa razão. Mas sempre elucidar e abrir os campos do jogo, possibilitando outra forma de análise que desconcentra do lugar comum.

Desculpem a imensa verborréia. Amplexos malungos a todos.


[1] Émile Benveniste (1902, Cairo - 1976) foi um lingüista estruturalista francês, conhecido por seus estudos sobre as línguas indo-européias e pela expansão do paradigma lingüístico estabelecido por Ferdinand de Saussure.
[2] http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.jsp?id=K4781351Y1

sábado, 3 de maio de 2008

Macchina Fame Famulus


“(...) faça rizoma e não raiz, nunca plante! Não semeie, pique! Não seja nem uno nem múltiplo, seja multiplicidades! Faça linha e nunca o ponto! A velocidade transforma o ponto em linha! Seja rápido, mesmo parado! Linha de chance, jogo de cintura, linha de fuga. Nunca suscite um General em você! Nunca idéias justas, justo uma idéia (Godard). Tenha idéias curtas. Faça mapas, nunca fotos nem desenhos (...)” Gilles Deleuze em Mil Platôs vol. 1

Em 2006 certa dupla de empresários - Gustavo Kaufmann e Carlos Marinho (Caco) - chegaram ao antigo negócio em propaganda do qual era sócio: uma agência de publicidade. Vieram atrás de novos retratos para o restaurante (Steak House) que iriam empreender. Queriam algo aberto, inovador, amplificado, diferente. Desafiante face ao experimentalismo e tempo dispensados para desenvolver projetos como esses. Após minha sociedade desfeita continuaram sendo meus clientes. Hoje, trabalhamos construindo conceitos que são mais que idéias: são ideologias gastronômicas. O resultado inicial foi uma coleção artística de 5 painéis para o DOC que entitulei: Macchina Fame Famulus . A seguir a descrição que apresenta as peças:


“A coleção dos painéis do DOC são visagens – visões e imagens – de um mundo fantástico, surreal, cômico, gastronômico, visitado, inicialmente, apenas pelo imaginário. Mas trouxe do imaginário um apanágio real, prático, visual. É só conferir na passagem ou gastando uns segundos diante deles para compreender que estão ali, apesar de fixo, móveis. Apesar de retos: profundos, tridimensionais. A coleção Macchina Fame Famulus – um pedantismo trazido do latim, para insinuar a vaidade charmosa das palavras que preenchem a boca – ou seja, Servos da Fome e da Máquina -, propõe a aproximação, a tradução gastronômica do DOC para o estético. É puro deslumbre para os olhos, fantasia para o tempo, para a freqüência ao maravilhoso lugar preenchido pelo bem estar e finos sabores, aliciado ainda pela gravidade e rusticidade de culinária sem igual. Um cardápio exclusivos de pratos especiais e sobremesas luxuriantes. Bom apetite visual e gastronômico.”


A edição n° 270 de 2008 de Casa Vogue tem uma reportagem que publica esse trabalho e expõe suas principais aplicações sob a arquitetura de Márcia Meccia[1], elevando ainda mais o concept design da casa. A assessora de imprensa do DOC, Adriana Nogueira, recentemente me entrevistou para uma publicação que ainda não posso divulgar. Mas sob autorização de Carlos Marinho, Chef e sócio do DOC relato na íntegra a entrevista:


Adriana Nogueira: Como chegou até o DOC?
O DOC chegou até mim. Eles vieram por causa de um trabalho anterior que desenvolvi para a Forneria Quintano, de quem são amigos.

AN: Como foi construir o conceito da comunicação?
Foi denso. Um experiência de descosturas sobre coisas pré-estabelecidas. Na verdade não há nada a comunicar. Não existe uma militância pré-estabelecida para propagar idéias. É sempre a sensação, a experiência visual a partir de elementos que tem a ver com a Steak House acrescentado àqueles que reproduzem imagens de cenas e coisas cotidianas. Foi divertido também porque o conceito é muito a imagem do que os donos pensam sobre seu negócio, é um jeito de antecipar o taste, os aromas, e os designs dos pratos. Em grande parte eles são muito responsáveis pela empreitada das peças pois tiveram a ousadia de acreditar e aprovar as idéias.


AN: Com quais elementos teve que romper e que outros agregou?
A ruptura maior foi com as idéias consolidadas sobre os aspectos estéticos da gastronomia. Os empresários dessa área são muito inclinados a investirem apenas na imagem dos itens do cardápio e terminam colocando na parede os quadros dos seus pratos principais ou mais bonitos. É uma visão essencialista, óbvia. Não encanta, não provoca e às vezes sugestiona um ou outro freguês. Mas não acrescenta ou possibilita uma postura identitária, uma qualidade estética ao ambiente. Não é uma foto de comida que vai dizer que esse ou aquele ambiente representa valores, conceitos, formas de pensar, agir, produzir e etc. Os donos são jovens empresários e um deles é Chef, um artista dentro e fora da cozinha. Eles sabem o que gostam de ver. Considero que a produção estética que criei é algo que nós, eu e eles, gostaríamos de encontrar se fossemos num lugar como o DOC.


AN: Sua inspiração?
Tantas. O conceito da arte do DOC passeia entre o surrealismo – pertencente em grande parte aos movimentos de vanguarda – e o fashionismo contemporâneo, uma arte mais suja, erótica, retalhada, fusionada. Artistas como Frida Khalo, Pablo Picasso e David Carson se juntam nessa história. Mas acho que são passeios que terminam num estilo pessoal. Tem ainda a inspiração mais importante que é a filosófica. A expressão artística do DOC é repleta de agenciamentos maquínicos, reflete sobre a máquina e a tecnologia que atravessa a vida humana, mesmo enquanto este se alimenta. Na verdade o homem só interrompe a máquina para se alimentar. Mas continua sendo máquina porque já está corrompido, atravessado por esta e não se sabe mais o que é homem ou outra coisa. Dá pra entender? Risos. A isso o filósofo Deleuze chama Devir ou Devenir, que nada mais é do que um “tornar-se” ou “vir a ser” parte daquela outra coisa. Em outro contexto sempre me faço uma pergunta: “qual o propósito desse negócio?”, “Será que é vender comida?”. Cada um pode ter a sua pergunta e resposta e eu tive as minhas: “o DOC não existe apenas para fornecer um cardápio sensacional, ele existe para nos retirar do tédio da televisão”. É uma resposta insana, mas é a que eu vi quando criei o conceito. Sair de casa para ir ao DOC tem que dar mais prazer do que apenas a gastronomia, é um apanhado de circunstâncias que me animam inclusive a voltar. É um chamado ao encontro, ao prazer, ao avesso de toda preguiça.

AN: Como adequar a comunicação visual ao conceito do próprio restaurante, algo novo em Salvador, e ainda atender às expectativas dos sócios?
Acho que tudo que se faz em comunicação visual está muito banalizado na cidade. Tudo agora é chamado de sinalização ou comunicação visual. Se se faz uma placa, um letreiro ou banner chama-se isso de campanha publicitária, de comunicação visual. Eu não faço comunicação visual, eu faço peças artísticas, sem nenhuma necessidade de comunicar algo ou interpretação. E as vezes faço propaganda. Eu trabalho na perspectiva das sensações, é bem diferente, é mais forte, mais vivo, mais rentável para quem contrata. Ganhar impressões é a melhor coisa para peças publicitárias. A opção e desejo de compra sempre está no coração do consumidor. Nos seus afetos. Acho que muitos empresários desse setor ainda não acordaram para isso. Um dia desses eu presenciei uma cena muito interessante, uma pessoa posando ao lado do painel Coffea Crepuscular (Crepúsculo do Café) para tirar foto. Acho que isso disse tudo sobre o que ela achou da casa. Acho que é o arremate da satisfação, depois da boa comida, uma boa lembrança para levar.

AN: O que quis provocar e despertar nos clientes do DOC?
Fulgor, sensualidade, caos, cotidiano, alegria, clandestinidade, poesia, gravidade, suavidade, estesia, vigilância, humorismo, crítica. Mas com certeza já devem ter sentido muita coisa diferente disso.


AN: Sempre teve liberdade de criar assim?
No caso do DOC sim. Em relação a outros trabalhos nem sempre, mas também sempre dei um jeitinho de forçar um pouco a barra e mudar o rumo do processo. Na maioria das vezes consegui, outras não. Mas o tempo as vezes mostra que posso estar certo e daí refazemos os conceitos. Dá pra entender? Outros trabalhos tem uma natureza mais fechada, sem essas possibilidades, pois pertencem a setores mais austeros, corporativos. Mas se tiver uma pessoa aberta do outro lado, tudo muda.


AN: O que mais quiser acrescentar.
Nada mais a declarar. O resto está lá, tem que conferir.


[1] http://www.marciameccia.com.br

sexta-feira, 25 de abril de 2008

Gildes Bezerra, voz do verso e do avesso.


Talvez você não o conheça,
mas ele sabe muito bem quem é você
e o que se passa aí dentro.


O rosto brame rugas e ainda os cabelos, contorno branco do rosto, espelham perfeitos os setenta e poucos anos. Ao telefone, de pausa em pausa, respeitando o assunto, tranquilamente desmantela seus temas, e, daqui a pouco um poema interfere nossos campos falantes. Assim é um oco do tempo quando a conversa é com Gildes. Uma das melhores coisas da face da terra. Deveria existir um guia para isso assim como aquela publicaçãozinha dos “1000 lugares para conhecer antes de morrer”. Mas Gildes Bezerra, poeta mineiro, nascido na Paraíba e formado em Horticultura é um pequeno castelo para ser visitado. Seu principado de textos dá mais piedade e êxtase que literatura modalizada. Chego a ter pena do amor depois que este é vitimado por seus versos, chego a ficar sem graça depois de cada poema. Mas que final? Não acaba. E quando seus versos viram canções nas mãos de mestres cantadores! Nos´inhora!


Em 1999 ouvi o Cantigas de Abraçar[1]. Almanaque musical duplo e ontológico de Dércio Marques. Uma obra musical que torna possível múltiplas existências. No acervo do CD 3[2] canções que me apresentaram o texto de Gildes. Foram chaves que abriram outras portas da minha vida. Sem brincadeira. É uma face da língua portuguesa anexada aos sentimentos humanos burilada na forma artística e que respondem ao mais profundo de nossos interesses. Gildes é um artesão do belo, um modelador de sentimentos, um espelho para a natureza que está dentro e fora de nós. É perito em coração, saudades e luas.

Minas da Lua
(Gildes Bezerra)

A lua nasce do ventre de Minas
Entre colinas e quaresmais
E eu ponteio a viola enfeitada
De fita encarnada
Pra lua escutar
Tambem as serras de Minas são belas
E são tão altas que de cima delas
Deus olha a terra
E a lua que banha as belezas Gerais
E com certeza o céu e o chão
Daquele sertão
Que e Minas de lá
E as estrelas no céu são boiadas
Que de madrugada
Repastam a paz
De noite Minas se enfeita de prata
Se esta no cio, se deita na mata
E então beija o céu
Fica prenhe de lua, de luz de luar

Eu sei que Rubem Alves[3], este famoso e digno autor, pediu a Gildes versificação para alguns de seus livros e que Ivan Vilela[4], exímio artista, fez música a partir destes. Fico honrado e orgulhoso por Gildes. E também por tantos outros grandes artistas que são parceiros dele[5]. No começo deste ano, em 2008, fizemos uma canção. Essa moda chegou num momento próprio, a vida dava retrato à metafísica desse poema. Daí fiz a canção e co-autoramos:

Tempo Nublado
(Duda Bastos/Gildes Bezerra)

A chuva fina e um coração faminto
Corre o perigo de ser infeliz.
Um sonho embriagado de absinto
Canta o silêncio, porém nada diz.
Ai quem me dera que o sol chegasse
E iluminasse um coração faminto
E este ontem que, quando passasse,
Levasse a dor que dói e que eu não sinto.

E este amanhã que já não sei se existe
Não ilumina um coração faminto.
E a velha lua nova sempre insiste
Em pouco alumiar o labirinto.
Ai quem me dera morta a angústia viva
Que quando mais aflora mais se enfronha
Nessa descrença que se torna ativa
Quando se luta mais do que se sonha.

A poesia é muito difícil. É um dilema da percepção. Está aglutinada em compreensões complicadas. Nossas culturas não são irmãs da poesia, elas são irmãs dos balanços, da ginga do corpo. Para ler ou ouvir poesia é preciso tato e retrato. É como disse Gildes: precisa dois poetas, precisa um que escreve e outro que lê. Precisa do espírito de poeta, se transportar a um estado de poesia. E conta que Chico Buarque disse um dia: “se um artista precisa explicar a sua obra a alguém, um dos dois é burro”. Na minha opinião Gildes é simples. Não é poesia concretista ou lisérgica. Mas é insana. É amorosa e fotografa os campos culturais do Brasil e dos afetos humanos. Ele é simples porque transparece em poucas linhas certas complexidades da vida.

Cissiparidade
(Gildes Bezerra/Nestor de Hollanda)

Cantaram canções doloridas
calaram seus cantos depois
se emudeceram sem vida
se dividiram em dois.

Saciaram na mesma nascente
a sede que o ventre dispôs
se desgarraram da fonte
se dividiram em dois.

Ouviram as mesmas histórias
do livro que o sonho compôs
fecharam as suas memórias
se dividiram em dois.
Jantaram a mesma incerteza
comeram ciúme co'arroz
se levantaram da mesa s
e dividindo em dois.

Choraram os rumos partidos
que o tempo jamais recompôs.
Seguiram caminhos doídos
despedaçados em dois.

Gildes seguirá assim, pousando em leves tintas, pinicadas de canetas e teclas sobre o papel de suas memórias, cabedal de estrelas. Descrevendo o céu ou desmanchando alguém nos participará sua amizade e gosto pelo ser, isso que só lhe custa oxigênio, alma e outro bem: a palavra, linda, tácita, sem a qual nem...Tristezas em trago. Amor aos pedaços. Dor que move o mundo, parte do atraso. Enquanto para nós seu principal tema, por enquanto, é viver. Viva Gildes!

[1] http://cliquemusic.uol.com.br/artistas/artistas.asp?Status=DISCO&nu_disco=6422
[2]Ou... me ensine (Gildes Bezerra – Luiz Celso de Carvalho), Minas da lua (Gildes Bezerra) e Cânticos (Gildes Bezerra – Dércio Marques)
[3] Conheça Rubem Alves: http://www.rubemalves.com.br/
[4] Conheça Ivan Vilela: http://www.ivanvilela.com.br/
[5] Gildes tem músicas em co-autoria com: Amaury Falabella; Amaury Vieira; Arlindo Maciel; Cristina Diniz; Cylene Araújo; Clóvis Maciel; Dércio Marques; Fernando Salomon Bezerra; Gereba; Ivan Vilela; Kátya Teixeira; Luiz Celso de Carvalho; Marcos José Marques Machado; Marcos Leite; Ir. Miria Kolling; Nestor de Hollanda Cavalcanti; Pereira da Viola; Plínio Ribeiro Leite; Renato Kefi; Rubinho do Vale; Uíles de Morais; gravadas por: Ivan e Pricila; Grupo Sol; Clóvis Maciel; Luiz Celso e Jorge Murad; Déo Lopes e Paulinho; Pedra Azul; Rosane Reis; Rubinho do Vale; Lucinha Bosco; Dércio Marques; Saulo Laranjeira; Uíles de Morais; Pedro Lima; Pereira da Viola; Titane; Ruth Staerke e Laís Figueiró; Coral Madri’Art; Pe. Vanildo; Pe. Jonas Habib; Ponto de Partida (Grupo Teatral) e Coral da Ir. Míria Kolling.

sábado, 19 de abril de 2008

Ensaio sobre o equívoco (ou Das inúmeras bobagens daquele filósofo)

Esbulho à entrevista[1] de André Comte-Sponville à Revista Época[2]

“ As moscas da Praça Pública (...) A praça pública está cheia de solenes bobos e a multidão vangloria-se dos seus grandes homens; neles saúda os senhores da hora presente (...) Não ergas a mão contra eles. São inúmeros; o teu destino não é tornares-te enxota-moscas.”
“Assim falava Zaratustra” F. Nietzsche

Naquelas horas, em Brasília, para aplacar o tédio, posto que estivesse num banco duro de um pequeno parque, eu contemplava algumas pessoas de idade e outras esquisitas a passear seus cachorros horríveis[3]. Possuía também, minutos depois, meu cachimbo e uma revista Época daquela semana. O frio era ameno e eu fazia hora numa das pequenas praças-jardins de um dos blocos de prédios. Tinha tempo de sobra para ler a Época, embora ela não merecesse.

Deparo-me, assim que começo ler, com assertivas missionárias resolvíveis para a “felicidade”. A empreitada parte desse indivíduo considerado pela revista “um dos mais respeitados filósofos e ensaístas da atualidade”. Não tenho nada a ver com seus méritos, são todos dele. No entanto, minhas tripas reclamam no mesmo instante que leio o entrevistado colocar em seu precípuo exórdio[4] respostas a perguntas, quase menos capazes, pistas e fórmulas para a “felicidade”. Em meandros diz que a felicidade é uma busca filosófica e possível de ser encontrada. Uma afirmação, na minha avaliação, demente. Parece uma conjectura Coelhiana [5]de saberes beirando os acervos místicos dos templários ou feiticeiros. Ou quase isso.

Comte-Sponville, em suas respostas, faz da felicidade uma busca filosófica. Para ele a felicidade se comporta como algo possível a ser encontrado no final de um processo. Ele parece pragmatizar – ou plastificar - um ideal humano. É óbvio que a felicidade converte-se num ideal pois habita no campo das idéias. A felicidade é uma ideologia. Para ele é como se fosse um produto. E é viável seguir uma idéia, ou o conjunto destas, que podem proporcionar a felicidade. Esse filósofo convoca elementos simbólicos que apóiam algumas ideologias mal inscritas em campos de felicidade. São modelos muitas vezes reacionários, capitalísticos que embromam a temporalidade da vida. Potencialidades morais. Tais poderes pregam sensos comuns e atuam em produtos valorativos tais como o modelo de família, imbecis felizes, ateísmo, riquezas, etc. A dificuldade de André está no campo valor daquilo que implica uma construção específica do Ideal de felicidade. O discurso é positivista e pessoal. E existem milhares de seres matriculados nessa forma de vida. Ele, de certo modo, está certo enquanto são em sua maioria, na sociedade, os seres massacrados sob a égide de emoções pré-fabricadas. Adeus a singularidades.

Em uma de suas passagens revela que a esperança é um agravante para se encontrar a felicidade. Como se esta estivesse por aí perambulando, podendo ser descoberta a qualquer instante. Um produto de vitrine para ser adquirido por certa quantia, desde que se possa pagar. O autor ensurdece com seus formulismos de felicidade. Para ele a esperança é um achado de apenas desejar o que não se tem: “porque só esperamos o que não temos”.

Respiro com dificuldade. Esperança não é isso. Não está na dinâmica da posse. O fenômeno da expectativa é um dado desse processo de acordo com uma das principais virtudes do ser: a paciência. Trata-se da natureza expectante do indivíduo absorto numa sociedade de lutas para viver ou sobreviver. O homem expectante aguarda otimismos e vontades que o estimulam a continuar. Mas, continuar a quê? Inicialmente ao aprendizado que nutre esse processo. E não ao propósito enfadonho por resultados, pelo tesouro escondido, pela cura. A felicidade para esse materialista mais parece um produto enlatado escondido atrás de um rótulo. Esperar é uma profunda experiência humana. É um sabor audacioso e em certos casos uma questão fatídica.
Por detrás de seu ateísmo revela símbolos sincréticos que falseiam o amor como algo imbricado na reificação, algo solto no espaço, algo de vínculo apenas orgânico. Faz do amor uma propriedade fisiológica como se pertencesse ao metabolismo do corpo. Comte-Sponville trata ainda a fé como elemento desestruturador psicológico. Quando na verdade as experiências mostram algum contrário . Em outros casos o cárcere dentro de uma religião e a libertação desse torna-se uma experiência que faz do ser um minerador ao centro de suas convicções e o capacita a tornar-se apto a descobertas (partidas e retornos). Ao mínimo uma compensação sensata: o que aconteceria sem a fé? A sociedade talvez mergulhasse na barbárie. Outras vezes, acho, isentos de fé; as ocupações guerrilheiras, seqüestros - relâmpago e balas perdidas; pareceriam brincadeiras infantis. E ainda: o capitalismo tsunami acabando em poucos segundos com iniciativas decanas ou seculares de negócios. E mais a sociedade “viking” compeliria os seres a subjugar pela força. A fé parece equilibrar a equação estabilizadora da sociedade tendenciosamente maniqueísta.

Sou cético em relação ao tecido social sem articulação espiritual. Sem a metafísica a humanidade fica óbvia. Mas falo também ao deslocamento pelo divino em atos e incursões a um ser superior. Ao se pensar na dimensão do seu próprio corpo, os ateus imaginam que o elemento vital parece sustentar-se ou por princípios físicos ou mágicos. Vamos escolher? Outros ateus, descrentes pesados, encontram assertivas menos industriais ou publicitárias, mas é visível que Comte não escreva livros, e sim os fabrique. Tal como o seu “O Pequeno Tratado das Grandes Virtudes “, uma bobologia operante que pretende adestrar pessoas para o bem. A cada minuto surge um novo Cristo, Buda ou Maomé. Nada novo sobre o sol. Este livro é mais perto de uma ditadura mascarada em publicação de cabeceira para pessoas mal-amadas. Mas também qual o problema em ser mal amado? Vamos discutir as culpas e traçar um projeto de conversações sem fundamentos. Leia “Ecce Homo” de Nietzsche. Aliás leia os dois. A postura caudatária de André a Frederic chega a ser imoral frente as cópias e deturpações que faz desta lúcida obra e (de quebra) de tantas outras.

Retire o espírito do homem – talvez até o espírito hegeliano[6] - e ele desmoronará. Coloque essa lei, fundamente os atos que agirão em função de idéias moralistas e crendices morais e convocaremos o terrorismo no corpo, mente e sociedade. Expurgo os clichês com os quais esse filósofo se diverte. Não é problema pensar a felicidade, mas é terrível fazer uma enciclopédia de modelos desta para os outros. Assim como a publicação de auto-ajuda é uma farsa. A televisão é mais edificante, um filme de Holywood até. Melhor seria se ele apagasse suas pegadas. Isso não vai acontecer, pois ele lucra fantasticamente sob a roupa de filósofo. Ele é um homem esperto e feliz.


[1] A entrevista pode ser encontrada em http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDG76063-6014,00-A+CONSOLACAO+DA+FILOSOFIA.html
[2] Revista Época n° 450, janeiro de 2007.
[3] Triste o costume de se criar poodles e cachorros em miniatura que mais parecem ratos. Essas pragas brancas e cardíacas infestaram o planeta transformando-o num verdadeiro mundo-cão. Desculpe o criticismo exagerado. Perco o(a) amigo(a) mas não perco a piada.
[4] Aquilo que antecede ao discurso. Ver o esquema aristotélico do discurso.
[5] Paulo Coelho, criador de contos-de-fadas para adultos infanto-juvenis.
[6] Uma esfera última do pensamento humano. É no espírito que está a sua fonte. Mente, para Hegel, se distingue do espírito. Somente o homem, como ser pensante, é capaz de produzir sentidos de beleza. Na verdade, o espírito direciona-se para a existência individual do homem através de seus devenires. O espírito absoluto é uma das necessidades de entendimento do mundo por intermédio de seus aspectos ou arquétipos gerais, que, entretanto precisam de um encaminhamento para o individual. A arte faz essa mediação de forma sublime. O espírito absoluto adquire vida no nível da generalização: pensamos sempre abstratamente e, no entanto, sentimos individualmente. Trecho adaptado da Idéia e o Ideal, de Estética. Coleção Os Pensadores e do texto de Elba B. R. da publicação Cantoria Nordestina: música e palavra.

quinta-feira, 10 de abril de 2008

Luiz Britto, letras e tintas

Vivo desse modo e é como vivo.
Eu só trabalho com achados e perdidos.
Clarice Lispector

Aos visitantes, ouvidores e amigos, uma seara de ventos diurnos – posto que nessas noites de abril quase nada sopre – invadem o simples adentrar da minha sala. Sorrisos rubis se abrem no mesmo instante que os olhos cavam a estética mais vibrante desse lugar: o painel de dois e sessenta por um e quarenta metros. É um casario meso-impressionista, alicerçado em cores vivas e terrais. Pintado a encomenda para uma nova casa que tive, veio em tela viva para ser crucificado ali mesmo. Exposto não decora o ambiente, o quadro tornou-se o ambiente e o resto o adorna. Só descobri meses mais tarde que o painel guardava um autógrafo com dedicatória.

Luiz Britto é baiano de Salvador, tem 65 anos, seus quadros são em algumas centenas, dezenas de esculturas e seus livros 50. De longe um dos pintores mais frondosos e vérvicos que conheço. Exímio baterista de jazz e pinicador de piano – como a si mesmo reclama – gosta de sentar e conversar. Prefere fazer chacota simples com as mazelas sociais e manda desavisados, que levam cachorros para o coco na rua, criarem cavalos no apartamento. Um jeito elegante de mandar os cachorreiros se foder. Isso está lá na calçada, pregado numa pedra. Em outra época havia uma placa de madeira pintada à mão com os mesmo dizeres. E em outra: “Abaixo o som, Kombi de frutas” e eu numa passada rápida de olhos lia “Abaixa o som, filhos das putas”! São retratos simples cheios de humorismos que abrigam o empedernido e sincero olhar de Luiz para a rua que passa. É lenda viva.

Em outras épocas, cansado da velocidade dos carros na pacata Rua Recife no Jardim Brasil, reclamava às autoridades. Elas nada faziam, mas ele sim. Construiu quatro quebra-molas num trecho de menos de 100 metros. Para suplício dos carros de passeio e divertimento da garotada – sim, eu era um deles – nos anos oitenta que ficavam a postos dentro do ônibus escolar para pular quando passasse pelas quatro pequenas muralhas. Atrasava a viagem, mas era estranhamente delicioso. Nem imaginava que conheceria, um dia, o autor dos mesmos.

O escritor e menestrel é envolto, em refúgio urbano, numa das últimas casas pitorescas da Barra. É uma pequena casa, obscura e atravessada por diversas interferências dos dons do artista. Uma simples mata desconvida, de certa maneira, qualquer intruso, mantendo a privacidade da família. Produz intensamente depois que se alforriou de um trabalho cívico, metódico e rotineiro. Aposentou-se para começar a trabalhar de verdade. Por esses dias finalizou o seu 50° livro. Um número muito à frente dos grandes literatos brasileiros. Mas, apesar de seus números, pouca gente o conhece. Alguns gatos pingados, artistas e intelectuais o sabem. Luiz é, dessa forma, um artista embrionário no acervo popular do Brasil. Habita uma fresta perdida, vive numa ninguendade aquém da sua importância para a pulsação histórica da arte contemporânea que acrescenta ao acervo do País. Mas talvez este seja o lugar mais importante para ele: o silêncio. Pelo menos por enquanto.

A pé, generosamente, leva os novos lançamentos para as bibliotecas e universidades, tal como os retirantes em busca de água, só que desta vez ele é a fonte. Em Nova York e outras cidades americanas seus livros ocupam estantes das mais conceituadas bibliotecas universitárias. Suas tentativas buscaram as livrarias daqui, mas veio, em seguida, um resultado ínfimo de projeção. De vendas não sei. Então vai de grão em grão buscando expandir seu universo, mostrando as suas fazendas de esperança. Britto é mais difícil num lugar muito pobre como a Bahia. É praticamente impossível para as mentes lavadas com a água suja da televisão. A TV não é o diabo, suas emissoras é que o são. Inviável para as elites que gostam mais de um sofá do que uma exuberante tela. Chato para a juventude - que sabe apenas escrever o próprio nome.

Ainda lhe resta o nome no conjunto dos pintores mais diferenciados da cidade. As galerias o sabem. Ainda lhe cabe a consideração e apreciação dos grupos que fazem parte e trabalham pela sua mídia de gueto. Pelo menos ainda lhe resta muita saúde pela frente: não vai parar tão cedo. Mas parou de jogar água nos vizinhos barulhentos. Uma grande pena!


domingo, 6 de abril de 2008

Favelinhas Educacionais.


A pedagogia do dominante é fundamentada
em uma concepção bancária de educação.
Paulo Freire

Uma das coisas mais paradoxais que existe são Faculdades Privadas posando de societais. Leia-se: acudindo os pobrezinhos e marginalizados da sociedade com projetos de inclusão, reparação, instrução, formação, o que diabo for. É no mínimo falsidade ideológica. Mas existem projetos e projetos. Não quero dizer com isso que não existam trabalhos frutuosos ou sérios. As filantropias estão na moda, e, assim como esta, nem todo mundo sabe como usar.

Na verdade trata-se de grupos quase carnavalescos – docentes - que pleiteiam adesão de foliões/estudantes para os abadlomas ou diplomadás (uma adaptação grosseira misturando diplomas com abadás, aquelas indumentárias carnavalescas baianas). Montar um projeto desses é quase montar um bloco. Existe todo o aparato: mobilização humana e confecção de veículos e oportunidades - mas no final é só desfile. Tudo lindo, mas é apenas grito de carnaval. Aqueles outros – os pobrecitos de Jesus - gritam em seus vasculhos de desespero, clamando formação ocupacional e a continuidade desta, numa construção global de campos educacionais. É aquela história: todo menino do Pelô sabe tocar tambor, mas não sabe ler.

Quem financia a sustentabilidade desses projetos? As IES[1] particulares não o farão, mas bolarão o projeto. Mesmo as grandes empresas não sustentam suas criações, é só observar a situação do Liceu de Artes e Ofício da Bahia, enquanto patrocinado e abandonado por uma grande empresa que financiava sua pers-ex-istência [2]. Sabemos as crises dos últimos tempos: estudantes largados no meio de seus trajetos e professores e funcionários com salários atrasados.

A casa só cai onde o dono não anda.

Um grande banco também faz. Há 100 milhões de anos geram sustentabilidade na Cidade de Deus[3] com vários projetos educacionais. Mas é claro! Uma empresa de lucro bilionário[4] tem que fazer uma gracinha para justificar o poder de seus juros.

Daí diversos grupos docentes se organizam para posar de assistentes sociais com fins lucrativos. Tudo isso a fim de justificar seu compromisso e ativismo nas IES particulares onde ensinam. As IES por sua vez sentem-se palosas e elegantes por estar cumprindo com o seu dever. Sentem? Tal qual o padre com sua paróquia, o médico e seu paciente, o marido e sua mulher. A consciência empresarial – se é que existe – agora se processa no sono dos justos, típico dos que foram encostar a cabeça no travesseiro depois do dever cumprido. Será?

Paulo Freire não era um utopista. Imagino que neste momento se revire no túmulo. O que fizeram com a sua Pedagogia do Oprimido grita aos céus. Confundiram vocação social com vocação assistencialista, educação com esmolação. Distorceram tudo em prol de propaganda capitalística e eleitoreira. Trabalharam para soltar o homem, mas não o libertaram.


“O movimento para a liberdade deve surgir e partir dos próprios oprimidos, e a pedagogia decorrente será aquela que tem que ser forjada com ele e não para ele, enquanto homens ou povos, na luta incessante de recuperação de sua humanidade[5]".


Vê-se que não é suficiente que o oprimido tenha consciência crítica da opressão, mas que se disponha a transformar essa realidade. Trata-se de um trabalho de conscientização e politização. Esses trabalhinhos chamados de societais de algumas IES particulares servem apenas para colocar esse outro no lugar dele. Esse outro “pobre” é quase como um índio colonizado. No sistema bancário de Freire, uma vasilha para ser preenchida pelo conhecimento. Não dá pra lavar a vasilha. O coletivismo está mais para semelhança etimológica com a lotação do fim da tarde do que o sentido ético que representa.


Tão estúpido quanto tudo isso é o programa televisivo da Regina Casé. Aquele que aborda os favelados com o projeto de resgatar ou promover a cultura e artes desses agrupamentos extra-intra-sub-urbanos. Sim, porque a favela quase não faz parte da cidade, ela entra como um adereço igual aquele do carro alegórico da Sapucaí. Nisso as cidades brasileiras são exímias carnavalescas. Pelo programa da Regina parece que existe algum grau de desejabilidade ou conformação do Brasil com as favelas ou com a vida no subúrbio ou periferia imersa nos genocídios, tráficos, precariedade infra-estrutural , oficinas de desmontes, grupos de extermínio dentre outros podres. Mas a produção artística é pautada como linda e maravilhosa. Aliás, a apresentadora em seus coquetéis nada deve ter de suburbana, mas porque está no jogo da aparência, na sujeição do tosco, posa de líder comunitária fingindo que vive na circunstância do pobre.


Enquanto isso nas FDAPSM - Faculdades Deus me Acuda para Sobreviver no Mercado - se inventa (cata por aí) uma instituição carente pra poder ajudar. Quem sabe assim o pessoal olhe melhor e faça uma caridade de inscrição nos cursos ofertados. Resta apenas uma versão menos idiota do clamor carnavalesco: “bota o pé no chão...”.

[1] Instituição de Ensino Superior
[2] Trabalhadores do Liceu protestam nesta segunda. Disponível em: http://www.atarde.com.br/cidades/noticia.jsf?id=843577. Acessado em 02 de abril de 2008.
[3] http://wikimapia.org/1247348/pt/
[4] O Bradesco registrou lucro líquido de R$ 4,007 bilhões no primeiro semestre de 2007, valor 27,9% maior em relação aos primeiros seis meses do ano anterior e o maior na história do banco para o período. Fonte: http://noticias.uol.com.br/ultnot/efe/2007/08/06/ult1767u99520.jhtm. Acessado em 03 de abril de 2008 [5] FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 15. ed. São Paulo : Paz e Terra, 2000.

domingo, 30 de março de 2008

Elomar, aquele grande país.


As canções do Sertão Profundo de Elomar Figueira Mello.
Apresentação para o Curso de Letras da UNIME – Lauro de Freitas, 30 de outubro de 2007.

Próximo ao átrio receptivo da Casa dos Carneiros, pelo qual se chega através de uma rampa, está a Sala Dos 7 Candeeiros. Hoje, um pequeno teatro para 200 convivas que se abre em meio a um local “perdido”, deslocado dos circuitos culturais de qualquer centro urbano. A Casa dos Carneiros fica num povoado chamado Gameleira, localizado a 19 km de Conquista. Um ambiente roçaliano, seco, áspero nessa quadra de outubro. Uma locanda envolta em pó e fumaça de lenha. Bonitos, os candeeiros dispostos nas paredes - seis dentro e um fora - completam a mística daquela canção: “Lá na Casa dos Carneiros, sete candeeiros iluminam a sala de amor. Sete violas em clamores, sete cantadores, são sete tiranas de amor, para amiga em flor que partiu e até hoje não voltou[1]”. Para quem conhece e chega, abre-se um portal atávico. Pirimpilhação de estesias. Para quem não o sabe, não existe catarse. O anfitrião, já fora das horas mortas[2], degusta café e pão. Sinal de que cheguei atrasado. Em seguida não demora a contação de histórias começar, e notícias de outras sendas são permitidas numa troca aprazível de saberes e novidades. Fico impressionado com o cuidado e amor na construção do teatro. No sonho do Bode, como o chamo carinhosamente, ele acorda espetáculo. Embora rejeite a exploração de sua imagem, se permite a câmara cênica para performances. Vou e volto em circunstâncias e a imagem que me toma é cheia de reverberação, nas histórias do cancioneiro Elomariano. Aquela acústica teatral cria e dispersa sonidos, e, logo testo o ambiente, a pedido do próprio Elomar. Ele fica paloso em reconhecimento ao seu grandioso artefato, ao templo da cantoria que torreou.

Perto dali, longe de qualquer razão mercadológica, Elomar refugia-se para distante dos olhares e companhias desnecessárias. Sua economia parece muitas vezes, segundo Jerusa Pires Ferreira, ser uma vingança ao próprio corpo. Talvez. Todo artista traz sua parcela de vaidade e os anos são como lâminas a lhes cortar. Ferido, fica-se exposto nas rugas difíceis. Mas encontro nesse fato do meso-exílio desse cantador, a presença cavalheiresca que precisa ser visitada. E eu preciso visitá-lo.

Ouvir Elomar é sentir algo afogado na ninguendade[3]. Não é música brasileira. É dramático e impossível de territorialidade. Ele inteira um país. Como o Vaticano dentro da Itália. A MPB ou variações dos títulos para a música brasileira, de acordo com o texto academicamente instituído como brasileiro, não encontra enunciados na sua musicalidade e poética. Não me parece de lugar algum. Elomar não tem a cara do “nacional”, de baluarte da pátria ou coisa parecida. Nem tão pouco o estandarte da música regional. Mesmo porque o regional, visitando Bourdier[4], é um terreno perigoso, que traz mais ficção que visibilidade. Aliás, que visível? E esse negócio de cultura regional, música de raiz nem existe (como sempre, isso é outro assunto). Mas o que é então?

É sertão profundo.

Uma concórdia para além dos costumes, cultura rural ou saberes lingüísticos. Panacéia de memórias esparsas no tempo e lugar. O sertão profundo é mundo filosófico, outro fulgurado por um sol diferente. É a impossibilidade metafísica do desprendimento, são altitudes poéticas e musicais que se abrem em resultantes. As obras de Elomar não são resultados de alguma cultura específica, mas de algo que vem de longe, de outras quadras, de outra física e atravessa o corpo inteiro do artista. Algo que não vem da paisagem, na idéia de Merleau Ponty[5], mas a ela se mistura e completa. A constelação do habitat traz a cultura rural para Elomar, este se reveste do sertânico e a produção artística passeia pelas palavras e linguagens dialetais. Recebe as doses de nordestinidade.

Tudo acidente de percurso.

O idioma sertanês – em suas múltiplas variações do português - apresenta-se como elã na construção do inteligível, na afirmação de labirintos dos versos: “(...) i antes ofreceu o mote, pro saco do saqué, e o cassote c´u pote deixo o quati só cu´a fé de qui dent´o do tal pote inda tinha algum café (...)[6]”. Tudo isso para não ser descoberto facilmente, pra ficar ali escondidinho, vendo o romper gota a gota, da arte profética, sertaneza, escatológica e bela. Para poucos, bem poucos. Distante das esquizofrenias capitalísticas – nem por isso alheio ao metal. Não cede, não empresta, nem vibra com “urbanóides[7]”. Tem alma boêmia e se refaz em alegria contando histórias que lembram mais o Pantaleão de Chico Anísio que as invenções de vaqueiros e comadres da caatinga. Não entende a indústria da cultura artística e não faz pacto com os lobos. Mas se apresenta telúrico, capitão, príncipe, vaqueiro na roupagem de música lúgubre e por demais épica, ofertando generosamente o seu imaginário e causos com ciganos. Ergo todas essas idéias com uma xícara de café forte. As horas arrematam o tempo, que passa lamentavelmente. Mas no cair da noite, lá na Casa dos Carneiros, sete candeeiros iluminam a sala de amor.

[1] Cantiga de Amigo. Letra e música de Elomar Figueira Mello. Presente no CD Das barrancas do Rio Gavião. Direção de Produção: Roberto Santana. Apresentação de Vinícius de Moraes. [S.l.]: Philips, 1973. 1 CD. Distribuído pela Polygram.
[2] As horas da morte de Jesus Cristo, entre 15h00 e 17h00 da tarde.
[3] RIBEIRO, Darcy. O Povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil.
São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
[4] BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.
[5] PONTY, Maurice Merleau-. Fenomenologia da Percepção. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
[6] Desafio, presente no CD : MELLO, Elomar;MARQUES, Dércio; XANGAI, Eugênio Avelino. Auto da Catingueira. Manaus: Sonopress 1984a. 2 CDs. Editora e Gravadora Rio Gavião.
[7] Urbanóides são, de acordo com Elomar, os cidadãos que vivem na Urbis
e discriminam as culturas campestres.