quinta-feira, 10 de abril de 2008

Luiz Britto, letras e tintas

Vivo desse modo e é como vivo.
Eu só trabalho com achados e perdidos.
Clarice Lispector

Aos visitantes, ouvidores e amigos, uma seara de ventos diurnos – posto que nessas noites de abril quase nada sopre – invadem o simples adentrar da minha sala. Sorrisos rubis se abrem no mesmo instante que os olhos cavam a estética mais vibrante desse lugar: o painel de dois e sessenta por um e quarenta metros. É um casario meso-impressionista, alicerçado em cores vivas e terrais. Pintado a encomenda para uma nova casa que tive, veio em tela viva para ser crucificado ali mesmo. Exposto não decora o ambiente, o quadro tornou-se o ambiente e o resto o adorna. Só descobri meses mais tarde que o painel guardava um autógrafo com dedicatória.

Luiz Britto é baiano de Salvador, tem 65 anos, seus quadros são em algumas centenas, dezenas de esculturas e seus livros 50. De longe um dos pintores mais frondosos e vérvicos que conheço. Exímio baterista de jazz e pinicador de piano – como a si mesmo reclama – gosta de sentar e conversar. Prefere fazer chacota simples com as mazelas sociais e manda desavisados, que levam cachorros para o coco na rua, criarem cavalos no apartamento. Um jeito elegante de mandar os cachorreiros se foder. Isso está lá na calçada, pregado numa pedra. Em outra época havia uma placa de madeira pintada à mão com os mesmo dizeres. E em outra: “Abaixo o som, Kombi de frutas” e eu numa passada rápida de olhos lia “Abaixa o som, filhos das putas”! São retratos simples cheios de humorismos que abrigam o empedernido e sincero olhar de Luiz para a rua que passa. É lenda viva.

Em outras épocas, cansado da velocidade dos carros na pacata Rua Recife no Jardim Brasil, reclamava às autoridades. Elas nada faziam, mas ele sim. Construiu quatro quebra-molas num trecho de menos de 100 metros. Para suplício dos carros de passeio e divertimento da garotada – sim, eu era um deles – nos anos oitenta que ficavam a postos dentro do ônibus escolar para pular quando passasse pelas quatro pequenas muralhas. Atrasava a viagem, mas era estranhamente delicioso. Nem imaginava que conheceria, um dia, o autor dos mesmos.

O escritor e menestrel é envolto, em refúgio urbano, numa das últimas casas pitorescas da Barra. É uma pequena casa, obscura e atravessada por diversas interferências dos dons do artista. Uma simples mata desconvida, de certa maneira, qualquer intruso, mantendo a privacidade da família. Produz intensamente depois que se alforriou de um trabalho cívico, metódico e rotineiro. Aposentou-se para começar a trabalhar de verdade. Por esses dias finalizou o seu 50° livro. Um número muito à frente dos grandes literatos brasileiros. Mas, apesar de seus números, pouca gente o conhece. Alguns gatos pingados, artistas e intelectuais o sabem. Luiz é, dessa forma, um artista embrionário no acervo popular do Brasil. Habita uma fresta perdida, vive numa ninguendade aquém da sua importância para a pulsação histórica da arte contemporânea que acrescenta ao acervo do País. Mas talvez este seja o lugar mais importante para ele: o silêncio. Pelo menos por enquanto.

A pé, generosamente, leva os novos lançamentos para as bibliotecas e universidades, tal como os retirantes em busca de água, só que desta vez ele é a fonte. Em Nova York e outras cidades americanas seus livros ocupam estantes das mais conceituadas bibliotecas universitárias. Suas tentativas buscaram as livrarias daqui, mas veio, em seguida, um resultado ínfimo de projeção. De vendas não sei. Então vai de grão em grão buscando expandir seu universo, mostrando as suas fazendas de esperança. Britto é mais difícil num lugar muito pobre como a Bahia. É praticamente impossível para as mentes lavadas com a água suja da televisão. A TV não é o diabo, suas emissoras é que o são. Inviável para as elites que gostam mais de um sofá do que uma exuberante tela. Chato para a juventude - que sabe apenas escrever o próprio nome.

Ainda lhe resta o nome no conjunto dos pintores mais diferenciados da cidade. As galerias o sabem. Ainda lhe cabe a consideração e apreciação dos grupos que fazem parte e trabalham pela sua mídia de gueto. Pelo menos ainda lhe resta muita saúde pela frente: não vai parar tão cedo. Mas parou de jogar água nos vizinhos barulhentos. Uma grande pena!


8 comentários:

Anônimo disse...

Duda,

essas bandeirinhas de luz do Luiz me trazem um sopro de Volpi.

Uma homenagem, certamente!


O espírito de um no inspírito de outro!


Abraços, flores, estrelas..

Mila Botto disse...

Belíssima homenagem! Postando durante a semana, que milagre é esse? Como sempre, textos muito inteligentes! Beijão.

Duda Bastos disse...

Boto,
os textos as vezes são folhas que se cansam de existir no subconsciente e caem sem avisar. Outonos.

Simone Cabral disse...
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Marcelo Stern disse...

Eis aí, com efeito, alguém que, não existindo, deveria ser inventado com a máxima urgência!

Anônimo disse...

Bela homenagem e belos textos.
Abraço.

Anônimo disse...

Muito bons os textos.
São por mim lidos quase que cantados ou interpretados tal qual um texto teatral. é incrivel o que suas palavras provocam.
Parabéns!

Antonio Ferreira de Britto disse...

Estimado Luiz

Fico muito feliz e osgulhoso do vosso trabalho suas cronicas são precisas, seus livros envolventes e sua pintura atraente um mestre da cultura e da arte Brasileira.

Um forte abraço e sucesso.

Antonio Ferreira de Britto