segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Aforístmos (1)

Se não houvesse filosofia, não questionaríamos o nível da besteira. A filosofia impede que a besteira seja tão grande. (Gilles Deleuze)

(...) a tristeza não torna ninguém inteligente. Na tristeza estamos arruinados. É por isso que os poderes têm necessidade de que os súditos sejam tristes [Deleuze, comentário à filosofia de Espinosa]

Citados anteriormente por Valter Rodrigues - acesse: http://usinagrupodetudos.blogspot.com

O narciso e o substituível


Do sistema máximo das expressões do mundo coorporativo: "ninguém é insubstituível" ampliou-se a praga da reificação de pessoas que assola nossos dias. A bestialização do humano é um risco cotidiano ao staff das empresas. O trabalhador performatiza o brinquedo ao jogo frio de um esporte radical de substituição de pessoas muitas vezes por alguém mais barato - economicamente viável - ou disposto ao sacrifício porque traz qualidades de ser excessivamente manso e diplomático tal qual o jumento dos Saltimbancos de Sergio Bardotti e Luis Enríquez Bacalov. Chamo este profissional de amenzista: aquele que diz "amém!", "concordo!", "é pra já, senhor!" para quase todas as coisas no seu círculo ativista ou profissional. De maneira semelhante ao personagem, se a carcaça ameaçar rachar podem sobrar coices pra todos os lados, pois todo ser extravaza suas crises, vezes explodindo ou implodindo. Na maioria das vezes o amenzista adquire um grau superior de subserviência transformando-se no profissional saco-de-porradas. São estes mesmos que acreditam estar desenvolvendo a carreira mas, na verdade, podem estar apenas afirmando uma produção subjetiva reificada.

Mas quem inventou a frase ameaçadora do insubstituível? O guru da auto-ajuda empresarial, algum líder militar disponível a morrer por nós? A viúva que conquistou um marido novo? Quem elaborou o "ninguém é insubstituível"?

Edson e sua lâmpada, Lavoisier e sua banheira, Galileu e sua prensa, Einstein e seu átomo, Tom e sua harmonia. Insubstituíveis.
Por que o contexto dramático da ação substituir? Sim, logo que a substituição faz uma higiene na memória, no rastro, na representação da pessoa. De fato o jogo de interesses coisificistas se justificam pelas coisas e menos pelas pessoas. Os apelos sobre as coisas são maiores que a vontade pelas pessoas. As pessoas se diminuem em função das coisas, mesmo se for diante de um objeto de pouco valor. Não se espera nem mais riquezas que esmaguem as pessoas a troco do esplendor, o que se deseja mesmo são apenas coisas, de pequenas a médias. Os acessoriozinhos e aparelhinho que todos estão consumindo, das celebridades e do comercial da TV. Lucros pequenos justificam a seleção das pessoas, é preciso sempre algo mais rentável, maior, imenso com menos esforço, menos pessoas, não importa como. Lucros grandes, pessoas pequenas. Parece que as coisas ganham definitivamente a vez sobre o valor da pessoalidade. A antropofagia branca, menos sangrenta que as histórias de Hans Staden. Ao invés de assar as pessoas e comê-las, as empresas cozinham-lhes os nervos, a psique, as emoções até o ponto de produzir frangalhos humanos. Essa criatura destruída se vê como um arauto do sucesso e do projeto carreirístico do valor capitalístico. Diferente do sistema de organização e administração de vínculos dos poderes públicos com suas agendas confortáveis de trabalho e períodos extensos de recessos para dar repouso à mente fatigada do parlamentar, do juiz, do governo, dos empregados federais que não podem ser substituídos a revelia em prol do lucro nacional. O estado é uma mãe, o mercado é a dona do puteiro.

Visualizo e considero pessoas insubstituíveis, momentos insubstituíveis, dores insubstituíveis, experiência insubstituíveis.

No panorama onde qualquer um pode ser substituído por outro chega-se ao ponto fatídico da nulidade até a regressão nadista do valor da pessoa. O ponto ápice da cultura desvalor. Nestas circunstâncias nada tem a importância que se possui, salvo a coisa imaterial em si evocada em números, no problema lucrativo. Já fomos apresentado pessoalmente ao Senhor Dow Jones que mede o índice das bolsas ou vimos esse cálculo ser feito matematicamente pela equipe que o desenvolve?

O que existe é o desejo de acumular poderes financeiros sem nenhuma medida de suportar o grau improvável de gastar pessoalmente a grande soma acumulada e que ficará acumulada. Acumula-se nos bancos para negócios futuros que talvez nunca acontecerão. Os ricos gastam pouco. Os grandes empresários temem o risco de suas empresas frente a fatores limites de crises. Eles vão morrer antes de torrarem ao menos 20% de toda fortuna. São narcisos capitais. Lambem-se diariamente afagando seus egos com as consultas diárias de rentabilidades financeiras e se observam em todos os ângulos no espelho de suas planilhas de acúmulos econômicos. São ídolos financeiros de si mesmos. As instituições sem rosto, as sociedades anônimas, são egocistas de um corpo sem órgãos, que tem vida própria alheia ao humano. Numa visão caricata é a Matrix dos irmãos Wachowski, uma imensa máquina com vida própria concebida no paralelo humano, feita a partir das idéias do homem e controladora do próprio homem. E o giro do planeta é um esforço continuo da natureza que justifica cada vez mais a saúde dos mercados mesmo que esse preço custe acabar com o homem e com a mais profunda de sua transformação: a pessoa. É uma ocupação radical da não-natureza sob o plano frágil do ser humano que precisa respirar e consumir alimentos para viver. O mais paradoxal é que o homem ao passo que é autor dessa fábrica fantasiosa, desse monstrengo alheio e subjetivo feito falso espelho para os narcisos e suas organizações não consegue acompanhar os problemas gerados por essa máquina. É o humano que sobrevive e deseja o sonho irreal do consumo super-herói que se pensa indiferente aos problemas cotidianos e para eles distantes, tais como: aquecimento global, explosão demográfica no mundo e ascensão bestial da violência nos grandes centros dos países em desenvolvimento. Temas ridículos para as mentes frias e empreendedoristas. São os mesmos autores de sonhos cujo panorama é a mais cínica fantasia de que nada de ruim está de fato acontecendo enquanto os balanços financeiros não revelarem nenhuma derrota. Ninguém importa mais que as finanças digitais. Todos podem ser substituídos, menos os números.

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

As canções do Sertão Profundo de Elomar Figueira Mello



O senhor tolere, isto é o sertão.
Guimarães Rosa

Próximo ao átrio receptivo da Casa dos Carneiros pelo qual se chega através de uma rampa, está a Sala Dos 7 Candeeiros. Hoje, um pequeno teatro para 200 convivas que se abre em meio a um local naufragado no espaço e tempo, deslocado dos circuitos culturais de qualquer centro urbano. Essa casa dos Carneiros fica num povoado chamado Gameleira, localizado a 19 km de Vitória da Conquista. Um ambiente roçaliano, seco, áspero nessa quadra de outubro. Uma locanda envolta em pó e fumaça de lenha. Bonitos, os candeeiros dispostos nas paredes - seis dentro e um fora - completam a mística daquela canção: “Lá na Casa dos Carneiros, sete candeeiros iluminam a sala de amor. Sete violas em clamores, sete cantadores, são sete tiranas de amor, para amiga em flor que partiu e até hoje não voltou (1)”. Para quem conhece e chega, abre-se um portal atávico, de estesias. Para quem não o sabe, não existe catarse.

O anfitrião, já fora das horas mortas (2), degusta café e pão. Sinal de que cheguei atrasado. Em seguida não demora a contação de histórias começar e notícias de outras sendas são permitidas numa troca aprazível de saberes e novidades. Fico impressionado com o cuidado e amor na construção do teatro. No sonho do Bode, como o trato carinhosamente, ele acorda espetáculo. Embora rejeite a exploração de sua imagem, se permite a câmara cênica para performances. Vou e volto em circunstâncias e a imagem que me toma é cheia de reverberação nas histórias do cancioneiro Elomariano. Aquela acústica teatral cria e dispersa sonidos, e, logo testo o ambiente, a pedido do próprio Elomar. Arrisco uns versos de uma canção. Ele fica paloso em reconhecimento ao seu grandioso artefato, ao templo da cantoria que torreou, e se gaba por mim.

Perto dali, longe de qualquer razão mercadológica, Elomar refugia-se para distante dos olhares e companhias desnecessárias. Sua economia parece muitas vezes, segundo Jerusa Pires Ferreira, ser uma vingança ao próprio corpo. Talvez. Todo artista traz sua parcela de vaidade e os anos são como lâminas a lhes cortar. Ferido, fica-se exposto nas rugas difíceis. Mas encontro nesse fato do meso-exílio do cantador, uma presença cavalheiresca que precisa ser visitada. E eu preciso visitá-lo.

Ouvir Elomar é sentir algo afogado na ninguendade (3). Não é música brasileira. A MPB ou variações dos títulos para a música brasileira, para o texto brasileiro, não encontra enunciados na sua musicalidade e poética. Não me parece de lugar algum. A não ser por um aspecto: pertencer ao território geográfico do país ou de alguns naufrágios da memória. Elomar não tem a cara do nacional, de baluarte da pátria ou coisa parecida. Nem tão pouco o estandarte da música regional. Mesmo porque o regional, visitando Bourdier (4), é um terreno perigoso, que traz mais ficção que identidade. Aliás, que identidade?

Mas o que é então?...É sertão profundo.

Uma concórdia para além dos costumes, cultura rural ou saberes lingüísticos. Panacéia de memórias esparsas no tempo e lugar. O sertão profundo é mundo filosófico, outro fulgurado por um sol diferente. É a impossibilidade metafísica do desprendimento, são altitudes poéticas e musicais que se abrem em resultantes. As obras de Elomar não são resultados de alguma cultura específica, mas produções de algo que vem de longe, de outras quadras, de outra física e atravessa o corpo inteiro do artista. Algo que não vem da paisagem, na idéia de Merleau Ponty (5), mas a ela se mistura e completa. A conjuntura do habitat traz a cultura rural para Elomar, este se reveste do sertanês e a produção artística passeia pelas palavras e linguagens dialetais. Recebe as doses de nordestinidade. Apenas acidente no percurso.

O idioma sertanês – em suas múltiplas variações do português - apresenta-se como elã na construção do inteligível, na afirmação de labirintos dos versos: “(...) i antes ofreceu o mote, pro saco do saqué, e o cassote c´u pote deixo o quati só cu´a fé de qui dent´o do tal pote inda tinha algum café (...) (6)”. Tudo isso para não ser descoberto facilmente, pra ficar ali escondido, vendo o romper gota a gota, da arte profética, sertaneza, escatológica e bela.

Para poucos, bem poucos.

Distante das esquizofrenias capitalísticas – nem por isso alheio ao metal. Não cede, não empresta, nem vibra com urbanóides (7). Tem alma boêmia e se refaz em alegria contando histórias que lembram mais o Pantaleão de Chico Anísio que as invenções de vaqueiros e comadres da caatinga. Não entende a indústria da cultura artística e não faz pacto com os lobos. Mas se apresenta telúrico, capitão, príncipe, vaqueiro na roupagem de música lúgubre e por demais épica, ofertando generosamente o seu imaginário e causos com ciganos, de tropeiros.

Ergo todas essas idéias com uma xícara de café forte e ele me acompanha. As horas arrematam o tempo, que passa lamentavelmente. Mas no cair da noite, lá na Casa dos Carneiros, vejo os sete candeeiros iluminarem a sala de amor. Violas em punho, partituras alcançadas e a furria espreita por onde latumias de cantos arpejam a alma.


Notas
1.Cantiga de Amigo. Letra e música de Elomar Figueira Mello. Presente no CD Das barrancas do Rio Gavião. Direção de Produção: Roberto Santana. Apresentação de Vinícius de Moraes. [S.l.]: Philips, 1973. 1 CD. Distribuído pela Polygram.
2.As horas da morte de Jesus Cristo, entre 15h00 e 17h00 da tarde.
3.RIBEIRO, Darcy. O Povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil.
São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
4.BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.
5.PONTY, Maurice Merleau-. Fenomenologia da Percepção. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
6.Desafio, presente no CD : MELLO, Elomar;MARQUES, Dércio; XANGAI, Eugênio Avelino. Auto da Catingueira. Manaus: Sonopress 1984a. 2 CDs. Editora e Gravadora Rio Gavião.
7.Urbanóides são, de acordo com Elomar, os cidadãos que vivem na Urbis
e discriminam as culturas campestres.

Imagem de abertura: candeeiro da Sala Teatro da Casa dos Carneiros - Foto: Duda Bastos

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Da crítica à observação experiencial estética.

Na probabilidade de expressões acerca de obras artísticas recorremos a forma magna das literaturas, a partir daquelas que trabalham visões escolares artísticas até publicações mais livres sem cunho erudito, ou seja, acadêmico. A frase longa que acabo de escrever bem expressa o esforço que existe em explicar consolidando argumentos, referências e muitos outros recursos para elaboração do discurso. E assim, continuo a fazer o mesmo nessas frases que prosseguem. Quase o mesmo, pois preciso modificar. Estou transtornando, revolvendo.

Pronto, comecei: a linha tênue e vibrante da poética, da sensibilidade inicia. Os planetas das regras e leis entram em choque. Amargedon de conceitos. Pronto: o jogo é feito. Ei-lo, viril, o discurso catártico das impressões do artista numa confabulante atividade sensorial, lúdica, louca. Minha fala meu som, minha rima, estética, verborrêica, neologista, descobriologista e...intensamente experiência estética. Hora com a memória, hora com o acervo colecionado das múltiplas referências. É deter-se, capturar pelo objeto num pormenor audível apenas para os cães. Uma linha frenética de sensação. Assim que a crítica cai sobre a visão, esta imediatamente evapora e fica o limo, a parte densa da percepção.

Esse contexto se aplicado as variadas formas da percepção do cotidiando surgem desafiadores, inclusive para a construção de uma novidade no planeta dos ex-macacos. É de Merleau Ponty a máxima "O verdadeiro Cogito não substitui o próprio mundo pela significação mundo." Mas a carga de envolvimento e produção sensorial é deveras díficil. Mas é elegante. O ser no mundo é uma soma de reflexos? Ele pode ser tratado como tal? Não podemos nos cansar agora com teorias da significação. Dá para entender porque não é possível o caráter legalista consumir a revelação crítica. Tais quais críticos de cinema, que ao redor dos especialistas (nesse contexto são aqueles que fazem cinema) se reviram em árbitros para dizer um-algo-não-sei-o-que sobre os diversos dramas peliculares de um filme. Mas o que lhe causa? Nada. Apenas uma sombra veloz de charme transeunte definido pela função. Supermercado de palavras. Nunca provocadora, porque no dia que forem serão uma observação experiencial estética e não mais a forma crítica estragada pelas palavras.

Como possuir e realizar? As vozes da sensibilidade e o acervo pessoal dão as linhas.

Observe:



Escrevi:
O corpo se defende da expressão gástrica do rosto. Um leve silogismo estético da Decadènce. Perfeito istmo ainda da linha que separa as coxas. Sob o provocativo tornozelo pernas impactantes com coxas sobressalentes e mais fortes que o resto do corpo. Aliás, essa imagem se fortalece decisivamente na expressão das pernas. A quebra da cintura uniformiza a padrão comercial a la Victoria Secret ou simples deboche para sustentar a quebra charmosa no tronco-eixo-pescoço. Enquanto a parte de cima tenta se resolver entre a depressão e nostalgia o resto do corpo é pura alegria. Numa vibração paradoxal de lúxuria, discrição e sensualidade. O raso do peito para mim é perfeito, sóbrio e andrógino. Crus, os botões dos lábios destonalizados do rubor fazem par perfeito com a luz que captura esses olhos desdenhantes do tempo, do que lhe fizeram ou vão fazer. Por sobre os ombros alguns cabelos desarrumados falam do casual e exibem a sátira angustiante para as beldades de chapas. Se fosse real diria que está em dores de amor.

É possível que o mundo das avacalhadas beldades, tidas como superficiais, consigam traduzir algo mais que além do ideal consumista de beleza. Depende, é claro, que quem vê e como vê.

domingo, 14 de junho de 2009

Autotradições. A formação das brevidades ou o desmonte das tradições.



Carpe diem quam minimum credula postero
dum loquimur, fugerit invida
aetas* Horácio (65 - 8 AC)

Aos 31 de dezembro de 2008 às dez horas respingantes sobre o belvedere da Igreja de Nossa Senhora das Mercês e Perdões, Ouro Preto, Minas Gerais.

Tardiamente descobri o desarme do pensamento comum. A defasagem dos meus intentos mostram o quanto demorei para me desamparar do ancestral, da operação afetiva tradicional e moral, dos títulos dos bons costumes. O território descrito em que se arrastava a percepção estava sob a égide de edificações quadradas, casais pseudo-elegantes, máquinas desejantes reprimidas, juízos nauseantes, gestos mumificados e obediências servis. Em parte devido a formação do grande sistema social familiar e educacional que negocia o medo através da regulação de uma forma eficiente de comportamento. Legaliza orientações morais para uma boa conduta em oposição à livre conduta. A livre conduta percorre a linha atenuante do desafio, da inconstância e até da desordem. Daí o seu temor e perigo. Mas esta linha de fora é um abrigo de autonomia e domínio. É no livre agir espreitando o discurso de respostas e sensações autóctones que viceja a pessoalidade, o singular, o "próprio de". O desarme da bomba de Formação Tradicional - ou também Educação Tradicional - pode alimentar um novo percurso para a vocação humana do livre pensamento e abreviação livre daquilo que chamo autotradição.

Primeiramente proponho a exibição do discurso da brevidade. Tudo passa ao tempo que se passa. Toda demora após o fato abandona a noção exata de tempo. O que se passou pode ser percebido apenas no "enquanto" permitindo assim à memória ter alguma reflexão dos instantes anteriores. Daí o fato de algo do passado provocar sensações mas exatamente não permitir atuações físicas no presente. Dessa forma, o valor do vivenciado carrega reflexos e atos, mas não possibilidades materiais. O instants é o real, material ou definido. A problemática do definitivo se monta em toda e qualquer previsão para aspectos congelantes. A brevidade surge como a possibilidade do inesperado. A marcação da brevidade permite o apontamento do transir, da modificação, do deslocamento. Convoca a não-fixação, a mudança, a desestabilização dos paradigmas. O sentido da brevidade se opõe a marcação por hora, fajuta, da fixação, da constância, do imutável. Mas não pelo desprezo ao justamente fixo, constante ou imutável, mas por todo sentido de efemeridade e insegurança que esses elementos possuem no mundo real, material. Descola-se então da temporalidade todo senso de definitivo para o espaçamento da brevidade, uma vez que, a tradição se fixa ao tempo, à conservação inevitável e impede a diferenciação mundana, profícua e capaz ao ser. Com isso é possível a ação do desfalecimento das tradições em oposição à morte das tradições. Matar a linha de conduta moral e performativa dos costumes paradoxais e realizar a circunstância do duplo relativo à construção da autotradição, do outro lado, da idealização da pessoalidade sentida e explorada pelo exalar das próprias idéias, sensações, gostos, percepção de mundo, moral, etc. Processos reavivados desconformes aos símbolos e valores distorcidos, atuantes em grande parte nas religiões ou regimes familiares patriarcais, comunidades saudosistas, grupos titulares e autoridades civis. Uma espécie velada de Fascismo (regime totalitarista que faz prevalecer os conceitos de nação e raça sobre os valores individuais).

Em segundo, descrevo a seguir, uma breve resolução com aspectos práticos para a autotradição e liberação da inconformidade:

1° Ficar disponível a uma outra obra sobre a moral tradicional. As sensações de alegrias próprias não podem mais ser regidas por alternativas de controle ou sistemas depressivos sociais comuns. Dessa forma ambientes austeros e disciplinares estão disponíveis para regulação de sociopatas e não da natureza comum. Exibições posturais de acordo com a estética do enrijecimento - doutores, juízes, militares, políticos, religiosos - revelam o grau máximo de discurso fático e falência dos últimos órgãos sociais da moralidade.

2° Deposição dos domingos e feriados e toda resolução do calendário que conformam o comportamento. A existência simbólica desses dias não atendem aos horizontes de expectativas passionais. Dias fixados para símbolos e idéias que induzem a processos de subjetivação massificadores. A culpabilidade do ócio na segunda-feira é para alguns o tormento e fator desregulador. O plano capital do comércio induziu o humano a um calendário exigente e material - reificador. Da mesma forma os dias festivos do calendário que servem para múltiplos fins inclusive regular a decisão e obrigação de afazeres e programação das emoções.

3° A elegância despistadora da atenção. O aspecto dialógico da desculpa e a manutenção da não obrigação. O ser vivido na medida de sua própria medida. Nunca na expectativa arrogante do controle, da desesperança. Sempre uma forma nova, uma abertura, outro ângulo, sempre o seu. Não o dos tutores, não o dos sacertodes, não os da lei, não os dos pais, não os dos formadores de opinião, mas os do auto, do próprio, da pele. Nunca a conveniência e o esforço para a paixão e sempre a fuga da censura de utilidade fria e calculista. Nunca mais aos "ensinados a mandar outras vezes a obedecer" e por tudo o autoensino para as escolhas, os autoinstantes e os autolimites.

A rebeldia em multifacialidade, a intransigência ao paradoxo, o desprezo pelo comportamental e enfim elaboração do próprio discurso. Ou tal qual Frederico: "domínio sobre o seu pró e o seu contra, e aprender a mostrá-los e novamente guardá-los de acordo com seus fins (...)".

* Colhe o dia, confia o mínimo no amanhã
Mesmo enquanto falamos, o tempo ciumento
está fugindo de nós.

segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

O Cantador que trama o verso*.

* mantido o tom acadêmico


Sem nenhuma alusão ao Oriente e intensa vocação pelo estandarte da poesia cantada, vive em nossas searas baianas, um trovador desgarrado das tropas antigas, da fenda do tempo, dos salões de reis castelares, chama-se Xangai.

O nome provém de uma sorveteria, datada de 1968, reconhecida em Nanuque, cidade da Zona da Mata mineira, que pertenceu ao pai do cantador, onde trabalhou aos 18 anos de idade. Assume a sorveteria – que possuía este nome – e, segundo conta, desenvolve um atendimento diferenciado cujo recurso de marketing é a própria figuração carismática de sua atividade no estabelecimento. Este fato possibilita que Eugenio seja referência direta da sorveteria, ou vice-versa, e então, passa a ser conhecido como Xangai. Apesar da sorveteria como negócio, não reside ali a principal inclinação profissional da família. Do pai Jany, sanfoneiro, “um bom tocador de oito baixos – sanfona Pé-de-bode -”, como relata o cantador, e do avô Avelino – exímio sanfoneiro da região Conquistense – obtém grande parte das influências musicais. É oriundo de um lugar sertano, remanescente do “Córrego do Jundiá”, região próxima à Vitória da Conquista que fica 14 léguas entre Itapebi e Potiraguá na região conhecida como Vale do Jequitinhonha.

“Eu sou cantador, canto minha circunstância, minha realidade. Eu sou um vaqueiro cantador, eu sou um pastor”.


Pertence, portanto, a linhagem de cantadores, logo, à primeira geração da Nova Cantoria. Esse conjunto é formado pelos novos cantadores: Vital Farias, Juraildes da Cruz, Elomar, Dércio Marques, Hélio Contreiras, Augusto Jatobá, Geraldo Azevedo, Alceu Valença, João Ba, Dorothy Marques, Maciel Mello dentre muitos outros, atuantes desde o final da década de sessenta. Da Cantoria Nordestina, Xangai mantém certa proximidade, em parte pelo movimento apresentar elementos performáticos que incitam à velocidade de articulação com as palavras e pela rapidez de raciocínio, na improvisação. Embora a Bahia não possua tradição na Cantoria Nordestina, Xangai colhe referências de momentos, considerados por ele, como importantes para sua trajetória. São circunstâncias que lhe possibilitam a convivência com renomados cantadores e repentistas, a exemplo de: Lourival Batista, Octacílio Batista, Manuel Xudu, Mané Serradô, Moacir Laurentino, Diniz Vitorino, Pinto do Monteiro e Ivanildo Vila Nova, este último parceiro de Xangai nas canções: “Galope à Beira Mar Soletrado” e “Natureza”.

Xangai é inclinado a congregações artísticas: é um apologista de cantadores. Tal posicionamento é uma das características intrínsecas ao movimento da Nova Cantoria. Possui carisma para agregar cantadores, poetas e instrumentistas dos variados gêneros em espetáculos e gravações. Da música pantaneira: Almir Sater e Renato Teixeira, até cantadores de coco, como Jacinto Silva – falecido em 2006. É um poeta-cantador que incentiva a movimentação artística e social da Nova Cantoria, proporcionando encontros e produções artísticas. Forma, atualmente, uma teia preenchida por profissionais de diversos setores que engendram ações culturais e artísticas na Nova Cantoria: comunicadores, produtores, publicitários, artistas plásticos, poetas, escritores, jornalistas, empresários e músicos.
A Nova Cantoria de Xangai apesar das necessidades e projetos capitalísticos, possui um ideal humanista peculiar. Tal fato constitui-se não só como propriedade da Nova Cantoria, mas como elemento vivo dos seus espetáculos e atores. Com a participação dos “companheiros” nas apresentações dos cantadores ganham ampla função espacial, tecendo imaginários e parecem corresponder aos anseios de seus atores na formação “da grande comunidade”.

Tenho grandes compadres, grandes amores, meus amores poetas. Homens. [...] Renato Teixeira fez uma música para eu cantar. Acho ela muito bonita. Muito preciosa. Chama-se “Pequenina”

De Hélio Contreiras, Xangai interpreta “Estampas Eucalol” – “Hélio Contreiras que me deu esse presente, e de Jatobá, “Matança”. Estas canções inauguram o reconhecimento público do cantador. Durante sua apresentação sempre menciona os compositores de algumas das canções que interpreta: Essa eu fiz com Capinam – referindo-se à canção “Que é que tu tem canário”; “Maciel Melo [...] fez uma canção para os meus dois filhos e me deu esse texto pra eu cantar”, a música: “João e Duvê”.

Em 1973 transfere-se para o Rio de Janeiro com o objetivo de estudar Economia, ingressa na Universidade, porém a abandona pouco depois para se dedicar à vida artística. Conhece, a partir de então, vários artistas, dentre eles, Geraldo Azevedo, Elba Ramalho, Alceu Valença, Antônio Carlos e Jocafi e muitos outros. Chega a trabalhar compondo trilhas para filmes como “Morte e Vida Severina”, de 1977, dirigido por Zelito Viana. E é no Rio de Janeiro que sua carreira como novo cantador se afirma. Principalmente quando ganha o prêmio Chiquinha Gonzaga de 1982, pelo LP independente “Qué qui tu tem canário?”. Sendo assim, essa trajetória ganhará marcação decisiva a partir do reencontro com Elomar no período preparatório para a gravação do “Auto da Catingueira”, em 1983. Xangai, desse momento em diante, constitui-se como um dos mais profícuos intérpretes de Elomar. Em Xangai, por sua vez, o próprio reconhece um cantador em pleno acordo com o texto e a disposição melódica das suas composições:

Assim é a fala de Elomar sobre o cantador: "Xangai, um cantor, um artista, um menestrel, um dos maiores poucos gatos pingados e tresloucados sonhadores-de-mãos-sangrentas-contrapontas-afiadas inimigas. Remanescentes que teima guardar a moribunda alma desta terra. Que também vai se atropelando contra a multidão de astros constelados que fulgurantes espargem luz negra dos céus dos que buscam a luz. Lá vai ele recalcitrante e contumás cavaleiro, perdulário da bem querência que deixa a índole dissoluta de um pobre povo que habita o espaço rico de uma pátria que ainda não nasceu [...]".

Xangai é um cantador de poderes rítmicos na canção. Além disso, possui trabalho vocal, de acordo com potenciais expressivos dos fonemas. Tal representação é reconhecida através de um jogo que executa entre a intensidade dos sons, nitidez do vocabulário que interpreta e o tempo. Desenvolve, assim, canções cujos textos poéticos possuem valor expressivo em função da articulação entre o ritmo e a pronúncia. As modalidades das canções, algumas delas, são de difícil execução. É o caso dos cocos, principalmente os “cocos trava-língua”, cuja repetição das sílabas semelhantes funciona como realce. A função da repetição é importante, não apenas por chamar atenção sobre o texto, nem pela natureza simbólica e onomatopéica, mas pelo realce de determinadas palavras. Tais recursos são melhor compreendidos na visualização do texto:

Olha lá, cantadô, olha lá
É bonito ver um gago grego gaguejar
Olha lá, cantadô, olha lá
É bonito ver um gago grego gaguejar
O gago grego quando vai falar gagueja
É uma peleja ver o gago grego gaguejar
Ele diz ta-ta, ta,ta,ta chegando a hora
O gago afobado chora porque não pode falar
(De Jacinto Silva interpretado por Xangai)

Xangai tem uma performance matemática na canção. Atua de modo eficaz na interpretação de certas músicas que exigem respiração adequada para legibilidade do texto e manutenção rítmica, como é o caso dos cocos sincopados. Ele afirma: “eu tenho um metrônomo dentro de mim [...] eu canto com a ‘arritmética’, e com a ‘arritmética’, eu canto o “diafragmático”. Tais músicas, que apresentam dificuldades poéticas, são chamados de “versos de pé quebrado”, que significam, humoristicamente, de acordo com Xangai: “tirar um verso de onde não tem e colocar onde não cabe”. Da mesma forma que estas canções exigem recursos vocais, interessam ao desempenho no instrumento, no caso de Xangai, o violão. Desenvolveu técnica própria no instrumento e o executa com distinta expressividade performática. Este feito produziu, um formato próprio no toque do instrumento, o modo de Xangai tocar, segundo Elomar é o “xangaliano”, e o intitula de: “Samba de Bico Roçaliano Impinicado de Sansão no Catado Miúdo Acebolado”.

Outra trama evidente na performance, poética e musicalidade de Xangai é a sua ligação com a União do Vegetal (UDV ). A UDV é um agrupamento religioso de fins espirituais que tem por conveniência práticas específicas, dentre as quais: valorar palavras de acordo com o significado metafísico embutido nestas, ou seja, para eles as palavras carregam superstições, noções espirituais e poderes de acordo com a idéia representada. Sendo assim, Xangai modifica algumas situações poéticas em que o verso está preenchido por palavras de conotação inadequada, segundo os preceitos da UDV. Nesse sentido, algumas composições que chegam ao artista podem sofrer transformações em virtude dessas crenças. Em outra situação, o verso também fica disponível a sua engenhosidade haja vista buscar melhor adequá-lo para, de acordo com visões próprias, empreender outro contexto para o verso. A prática da UDV busca reposicionamento de palavras, as quais, em certo sentido, procuram um sinônimo adequado transformando o plano energético incutido na significação. A exemplo disso tem-se a palavra último que deve ser substituída por derradeiro, pois derradeiro significa aquilo que não termina, e, se coloca como algo que pode vir além. Último pode atrair sensações e realidades indesejáveis para quem a proclama.

Esses aspectos singulares fazem de Xangai um poeta-cantador atento a certas minúcias e cuidados com o próprio aspecto artístico. É um cantador de múltiplas delicadezas, desde as vestimentas, adornadas em detalhes que perpassam bordados, coletes, cintos e acessórios de couro e tecido, sapatos e botas elegantes, chapéu, unhas sempre bem feitas e barba retocada, até utensílios da prática artística: instrumentos que adornam sua performance, violões bonitos, de qualidade sonora, com roseiras finamente desenhadas e madeiras nobres. Em seus bolsos, coisas aromáticas: rapés, óleos mentolados, perfumes. Em prosa, um cantador com um discurso pausado, levemente insinuado em fala melódica, quase cantando ou recitando seus argumentos. No dedo, um anel de estrela, como referência direta ao Centro da UDV que freqüenta, o Estrela da Manhã. Tece, prazerosamente, o ofício de cantador e contador de histórias, ofertando suas síncopes vocais, agregando as pessoas a participarem, com ele, das canções propostas. Na roda de cantoria atua como maestro, organizando os “ataques” dos violeiros e medindo o volume dos instrumentos para harmonização. No palco, exerce pleno controle sobre o texto do repertório, deixando legível, mesmo as canções linguisticamente complexas, capturando e seduzindo as audiências através da performance configurada em humorismo e alegria.
Ê cavalêro.