segunda-feira, 6 de outubro de 2008

Dércio Marques. Menestrel das matas e das cidades.

Ouça a mata cantar. Pela garganta de um fauno cantador gritam os anseios mais densos que confundem os elos humanos, os desejos, as crenças espirituais. Há algo de um índio antigo em suas orquestrações. Ele é puro, desconhecido, inusitado. Nunca tímido, mas silencioso e pensador. Pensa ali suas harmonias e solfejos. Rico despoja tudo que tem para simplesmente nada ter, senão a viagem. A desarrumação, o caos e as malas prontas. Para ir, vir e devir.
Foto: Dércio Marques 1974

Dércio Marques é uma arqueologia de sensações musicais para além das notas enfadonhas. Existencialista: canta, de modo afetivo o homem em suas relações humanas e sociais, apropriando-se, de acordo com cada fase da sua história, dos tesouros que pirateia por aí. Vive envolvido numa performance errante na vida artística. Consumido na referência imediata de um estilo de vida inusitado, cigano para tantas cidades.

Suas cercanias artísticas foram constituídas por nomes célebres da música latino-americana, como Mercedes Sosa e Violeta Parra, e de muitos outros cantadores do Brasil e América Latina. Certo dia rompera com o Brasil face ao desgosto que aqui se encontrava com tanta bossa-nova e Iê-iê-iês. De certo que voltaria atravessado por ponchos e charangos. Quando voltou não se sabia direito e isso foi pelos idos de 1974 quando conheceu Elomar Figueira Mello. O canto vaqueiro, territorialista, nativo de Elomar o reconduziu a uma nova locanda. Para ele faltava esse telúrico pois a bossa se empunha como movimento para certa debilidade naquela época, pois era mais parecido como proposta das massas elitistas cariocas, paulistanas e baianas em acordo com o consumo imediato.

Dércio, eu vejo nele um menestrel, um trovador clássico – como eu sou também – aquele típico trovador que canta trovas, troveiro, rapsodo menestrel. Um músico de ponta, um ouvido fantástico, uma voz afinadíssima, um timbre belíssimo, uma postura de palco teatral, naturalmente teatral. Ele não faz força para fazer nada, tudo o que ele faz no palco é bonito, aquele jeitão dele, fazendo o que um grande artista faz, o mesmo que centra o espetáculo. Às vezes ele chega assim, completo, muito polivalente, músico. É costume ele andar por aí feito um cigano, e esquecendo os instrumentos no palco, tem dez instrumentos, larga um, pega outro, desafina uma corda, muda pra outra. Põe na afinação que quer, é um riachão, um cebolão, pega a viola de dez cordas, depois pega o violão de concerto, vai pro charango, um bandolim, depois bate no tambor e vai embora viajando, no concerto não pára. Elomar Figueira Mello

Meu convívio com Dércio data de meados do ano 2000. Desde essa data não entendi mais nada. E até hoje preciso parar delicadamente para assimilar aos poucos o que sua poesia e música pretendem nessa era de ansiedades. Seu ouvido musical apurado e sagrado explora uma música transcendente, mística. Em suas canções, ou nas que interpreta, fala de seres carnais, espirituais e das trocas afetivas entre os juntos ou desligados.

Meu amor adeus
Tem cuidado
Se a dor é um espinho
Que espeta sozinho
Do outro lado
Meu bem desvairado
Tão aflito
Se a dor é um dó
Que desfaz um nó
E desata um grito
Um mal olhado
Um mal pecado
E a saudade é uma espera
É uma aflição
Se é primavera
É um fim de outono
Um tempo morno
É quase verão
Em pleno inverno
É um abandono
Por que não me vês, maresia
Se a dor é um ciúme
Que espalha perfume
E me agonia [...]
(MARQUES, 1999, CD 1, faixa 1)

“Por que não me vês” do compositor Fausto. Gravada por Dércio Marques no álbum duplo Cantigas de Abraçar.

Em outra face canta as desigualdades sociais e as angústias que acompanham o homem esmagado pelos poderes do mundo do trabalho e passeia através de um texto denso, coligido de poetas como Atahualpa Yupanqui, Elomar e José Maria Giroldo.

Dércio é um artesão musical: “constrói” cada som em função da necessidade artística do projeto. Muitas de suas obras musicais foram feitas artesanalmente, ao longo de vários anos, e uma se torna ontológica: “Segredos Vegetais”. É uma obra finíssima e cuidadosa composta durante doze anos e levou mais quatro para ser gravada. É uma composição musical criada com um acervo sonoro pluralizado com registros da natureza e uma diversidade de instrumentos musicais. Este trabalho é constituído, segundo Dércio, com o objetivo de formar um ambiente temático que sugerisse os “cânticos mais profundos da natureza” e repressentasse a aura das matas e suas entidades espirituais.

Enquanto nos exprememos entre sintonias dialógicas das rádios e i-pod de oitocentos mil gigas com quarenta e cinco milhões de músicas em mp3, é possível que uma só canção de Dércio não consiga ocupar de uma só vez o coração humano ao mesmo tempo que seja possível preencher todo o seu afeto. Caso resolva adentrar nessas canções não espere nada ecológico, pois a floresta dos sons de Dércio vai pensar que é você que precisa de cuidados e proteção ambiental. Comece espalhando os segredos: Segredos Vegetais.