quinta-feira, 15 de julho de 2010

Vale do Capão. Fulguração excêntrica para uma vida fugidia.



Né maconha não, é Trevo.
refrão da canção entoada em Caeté-Açu - Capão.
Autoria desconhecida.


Acerto o carro para compor o melhor trecho a me salvar dos mondrongos altos e baixos da estrada de terra nos 21 quilômetros percorridos entre Palmeiras e o vilarejo de Caeté Açu, conhecido fabulosamente como Vale do Capão. Nesse traçado me aproximo beirando a estrada a ponto de ver o rio corrente colado no caminho logo próximo às imediações da primeira ponte. O hálito fumaçado já acusa a noite mais fria, diferente de outras em toda Bahia. Nenhuma com esse clima e cheiro perfumado de entre-montanhas da Chapada Diamantina. Nesse solstício de julho em que a temperatura declina até o fim de agosto encenando a melhor previsão do tempo dessas regiões, e, as brotaduras do chão são rugosidades lamacentas por onde anuncio minha chegada, a recompor vitalidades dificilmente conseguidas ao longo do ano nos nefatismos de meu centro-cidade. Os espaços grotescos e frondosos por onde percorro tendo ao lado meu Sancho de aventuras, um cão Boxer, causam demais quantidades de prazer sensível. Ele com a carona fora da janela está a consumir o melhor do vento, eu arrisco o braço afora para manter-me próximo à temperatura ambiente. Após sobe-desces chego a hospedaria que me recebe com uma fina garoa erguendo os sons noturnos e outros cheiros amadeirados, enfolharados e barrescentes. O cão alucina. Eu idem.

Frequento o Vale fixando estadia desde 1998, antes apenas de passagem. Acompanho as mudanças, novidades, histórias, máculas e maravilhas. Chego a considerar este lugar possuidor das energias vitais mais profundas já sentidas por mim. Dessa energia complicada em descrever, na forma confucionista de tudo haver necessariamente uma explicação plausível. Trata-se de outra maneira, outra sensibilidade transcendente, desconhecida e valorizada nos planos religiosos diversos que recheam esse Vale com centros de curas e tratamentos das mais variadas naturezas espirituais ou não. O Capão é um armázem natural de tudo quanto é substância aliciadora a estados de alteração mental e espiritual, desde ervas bem conhecidas chegando aos cogumelos alucinógenos. Além de crenças nas entidades gnomológicas e élficas a única capelinha do vilarejo está fechada, sempre, parece ser decisiva a ocupação por outros deuses a animar os buscadores espirituais de lá. Não é o meu caso. Porém, algo de mágico se ocupa das viagens dos transeuntes instalados ou visitantes do lugar. Existe magia em quase todos alimentos serem livres de química industrial ou agrotóxicos: os vegetais, o pão, as massas e o café, produzidos e consumidos no local. A forma higiênica como procedem os estabelecimentos orientam subjetivamente para os graus de pureza encontrados por onde se toca, anda e respira dentro desse Capão.

Hoje, depois de seis dias em estrelas, alvoradas, rios gelados e breus estou de volta sem nada nas mãos. Não posso trazer a Cachoeira da Purificação, a mata do Pati, as noites do vilarejo, os personagens das vielas, a lama do Bomba, as jaqueiras do Calixto, o Rembrandt em plena noite, as vias de acesso e placas nominativas de cada lugar, as pinturas de Salomão e os chalets de Zéu. As sobras das unhas destinadas ao violão foram despedaçadas e a voz perdeu-se por dois dias após a violada que começou cedo da noite e terminou às cinco e meia da manhã. As nove e meia já estava acordado para recomeçar as pinturas nas vistas e o exercício gastronômico de me esbaldar. Sempre depois de dar uma chegada no vizinho Zéu e palestrarmos sobre os nobres ares da vida debaixo de um café. Soltando o cachorro no mato vejo ser a liberdade esquisita para quem se acostumou a ver e rever seus e-mails constantemente. Atualizar correspondências e devolver ligações por hora perdidas. Desmantelei em seis dias todas essas necessidades e quase vivi como o mesmo da década de oitenta, ou mais antiga. Sem telefone, sem computador, sem cartão de crédito. Simplicidade e liberdade ficam esquisitos quando se está protegido pela inquietude da estabilização. Parece não ser apenas os virginianos a desejarem tudo em seu devido lugar e vejo como as ansiedades postas à mesa são uma péssima digestão no dia-a-dia, em dias comuns da vida capital. Meu ensaio de fugere urbe ficou dissolvido nos meus prós e achados sinceros do desejo de mudar e retornar a outros desejos. Transformar a cabeça, higienizar os consumos e dissolver os objetivos práticos e sistemáticos, saudando em certo tom amoroso a boa vontade com minha natureza carente do verde e do frio, do riso e da liberdade. No Capão só quem cobra é quem vende. As pessoas estão certas ter nos outros a idéia de buscadores, pois não precisam devolver nem acenar, retribuições são todas francas, se acontecem ou não. Lá não se espera, não se alcança. Lá a vida corre como tem que ser, em cada meta surpresa na infinitude de cada campo de alegria surgindo a qualquer momento nas esquinas, nos quaisquer trechos de barro ou mesa onde se come. Os fajutismos quando aparecem lá ficam por conta de um e outro visitante deslocado do ambiente, sem chances pro perverso ou autores das práticas ruins das cidades, são gentilmente convidados a se retirarem do Vale ou antecipadamente descriminados. Aventureiros tem menos chances ainda pois o Capão devolve ou despeja as forças estranhas realizadoras da invasão. Aquele campo, enquanto durar o projeto, está livre e certificado como um dos mais transcendentes e importantes lugares da terra. Ouvi de alguns viajantes do mundo inteiro sobre a força do Vale: nem a Índia possui a vibração viva e instalada entre os rochedos. Particularmente o lugar mais bonito já visto por mim foram as montanhas e formações naturais das middle lands escocesas mas não chegam à altura da vibração do Vale.

O Capão conserva tipos curiosos para olhares desavisados. Rapidamente podem ser confundidos com personagens amparados por diversos rostos estéticos presentes no imaginário comum. A proeminência da cultura zen com a dos moldes rastafaris mesclam aspectos figurados da cabeça aos pés revelando seres típicos-a-típicos. Alguém já soprou nos meus ouvidos sobre esses transeuntes capônicos serem uma espécie de rastafari indiano. É provável certamente existir algum portal sublimado em outro plano entre esses dois lugares; Índia e Capão. A presença das duas culturas é muito naquele lugar. Acredito ser a marcação identitária de adereços, figurinos, jeitos nos corpos a primeira posse territorial realmente autêntica para aqueles seres, e, ainda conformados num grupo é praticamente impossível exercer qualquer vidência no âmbito do interior de cada criatura assumida naquelas plenitudes estéticas. Da abnegação de todo projeto material de vida aos pés sujos arrastados nas sandalinhas eles vão vivendo e seguindo a troco de pão no cotidiano bravio do Vale. Alguns despejaram suas reservas acumuladas numa vida dramática nas cidades-centros, de repente cansaram e ergueram no Vale sua tapera, podendo assim recomeçar a vida e outros tão jovens escolhem a vida leve e livre a troco de bens-estares e verdades ideológicas. Talvez seja corajoso ou talvez fugidio. Talvez nômades em troco de ares e outra possibilidade de vida. Alguns descobriram poder ganhar algum dinheiro sendo daquele jeito. Outros apenas se precisam fora das massas e se uniram às suas multidões, no derivativo do Uno, perseguindo, na palavra socrática, o seu apeiron, o Ilimitado, ou tal como Marx seu intelecto geral. para Peter Pál Pelbart a potência ontológica comum. Precisamente são raros aqueles exploradores e aventureiros dessa cidade interior. Os zen-rastas-índios do Capão fogem do mundo não porque são covardes ou sofridos, mas porque são nômades. Essa multidão se gosta no contexto de expandir em pobrezas, algumas restrições construindo seu agregado indomável em uma microafetividade pertencente apenas a eles e mais nenhuma outra forma social de existir. É complexo a dimensão nomadista de quem está apenas no transir buscando alguns desprendimentos a respeito das formas de poder sobre a vida para dar lugar a potências para a vida. Eles são os reterritorializados, aqueles que fogem e fazem tudo fugir. Sua própria desterritorialização é um território outro, subjetivo. Entenderam de vez ser a nós vendido o tempo inteiro maneiras de ver e sentir, de pensar e de perceber, de morar e de vestir, e acrescentaria ainda os maneirismos vendilhões de amar e renunciar, num processo contínuo de consumo de, mais que bens, formas de vida. Eles não consomem aquela subjetividade, a vivem como tal. É uma fé, uma crença, sem moedas, sem aparências, sem vitrines. Ao menos se colocaram no caminho de não possuir, de não sobreviver aos ideais enfadonhos e extremamente infelizes de uma vida ordinária, alarmada em inseguranças, angústias e autoflagelações. É importante coexistir naquele ambiente onde alguns mergulhos gelados e manhãs despertas em paz dão sentido a outra forma de existir na dimensão fugidia do julgo dos dias, das cenas enfadonhas e óbvias das ruas comuns da cidade onde vivo. E ainda mais importante pelas pessoas inseridas naquele contexto sabedoras de outras incertezas e tão realmente vivas.

Quando cheguei e girei as chaves de casa vi que dessa foi a mais difícl de ter saído de lá.

domingo, 27 de junho de 2010

ESCATOLOGIAS MAFFESOLISTAS - Ensaio crítico ao Elogio da Razão Sensível de Michel Maffesoli



Michel Maffesoli é considerado um expoente do pensamento sociológico contemporâneo francês. Possui a veia de contagiar diversos grupos acadêmicos que realizam pesquisas artísticas, embora este cientista produza inicialmente sobre questões de bio-política, sociologia e imaginário. Na forma simpática como se apresenta ou em sua literatura, expõe os traços visíveis do modus operandi encarnado em sua vida. Acima da pequena gravata borboleta vibra o humorismo e ironia, concisa ou hermética, que é até certo ponto a vitalidade astuta, num bom sentido, sobre o que diz quando aponta o dedo. Ele se afina em suas declarações e produção textual com tendências atávicas de uma sociedade intelectual que já não concebe o mundo pelas velhas fórmulas, pelos antigos métodos. Isso não é uma novidade para a contemporaneidade e finalmente parece apenas ser mais um cientista a dizer que o fim está próximo. Tal como profeta, se incumbe a missão de anunciar o encerramento de uma ideologia massificadora e altiva do logocentrismo sobre o qual se ergueu a totalidade das ciências. Nada novo sob o sol.

Em O Poder Simbólico Bourdier aludiu sobre a funcionalidade e pragmatismo no sentido gnosiológico, ou seja, o sentido imediato do mundo (e, em particular o mundo social), em que o homus academicus gosta do acabado, valoriza a moral do trabalho bem feito sem riscos, de modo semelhante aos pintores acadêmicos que fazem desaparecer dos seus trabalhos os vestígios da pincelada, os toques e os retoques. Na mesma orientação Maffesoli remonta Flaubert ao alertar sobre a gana de querer estar sempre com uma postura conclusiva onde o positivismo foi plantado e o fluxograma instituído e o caráter dos encantos destruídos pela ânsia e ganância pelos resultados, em oposição direta às resultantes. Algo que Deleuze trará, inspirado por Bérgson, na revelação do avanço das multiplicidades, e esta por sua vez não tem sujeito nem objeto, mas somente determinações, grandezas, dimensões que não podem crescer sem que mude a natureza (as leis de combinação crescem então com a multiplicidade). Ora, essas elaborações trazem o mesmo retrato colocado por M. Maffesoli - há nomadismo no ar: o pensamento vagabundo que seja à imagem da errância social. É a profusão rizomática de Deleuze, a restauração do Impulso Vital de Bérgson e mesmo Bourdier que diante do esforço pela divinização do prático ainda ausculta o âmago da pesquisa com o relacionalismo sem a perspectiva arrogante de reduzir os dados à metodologias essenciais ou estruturalistas. Até mesmo um fenomenologista como Merleau Ponty aquiesce o sentido das coisas observadas ruindo certos monumentos totalitaristas, eclodindo as potências de síntese e abrindo espaço para o auto - partícula self - e para as singularidades : a cada momento, meu campo perceptivo é preenchido de reflexos, de estalidos, de impressões táteis fugazes que não posso ligar de maneira precisa ao contexto percebido.

Este ser - pesquisador - vacante, transeunte, derivante que observa e pensa a vida social começa por concebê-la como ela se apresenta, não como ela deveria ser ou tal como se gostaria que ela fosse. Para M. Maffesoli cada coisa se mostra como sua própria interpretação diante dos grandes sistemas do pensamento elaborado, que ficaram, por sua vez, preguiçosos no dessecamento dos problemas. E mais uma vez a fenomenologia se faz presente na reaquisição do que afirma como à própria coisa, reconhecendo que não há definitivamente um Sentido estabelecido mas uma pluralidade de situações pontuais que são constantemente variáveis. Ao tratar com Bachelard suspende a importância da manutenção por um bom tempo à superfície irisada onde é possível compreender o preço da profundidade. É a superfície de inscrição de Deleuze ou o mais profundo é a pele de Paul Valéry.

O princípio de acordo entre vários pensadores, que demonstro, parece funcionar muito bem como algo político desse tempo e até certo ponto é possível pensar que fazem parte de um todo complementar para a formulação do pensamento contemporâneo. Entretanto, no jogo das dialéticas existentes entre a forma e o fundo, a profundidade e a aparência, e o que aparentemente se insinua como esclarecedor, aponta, na verdade, um cabedal de dúvidas. Para M. Maffesoli, a partir desse momento, toda a questão é conjugada no presente através da valorização do fenômeno em si, onde mantém seu principal sentido e não precisa ser relacionado a um além de si mesmo, qualquer que seja este, segundo o próprio autor. Ora, essa construção poder erguer-se como enfraquecimento à perspectiva de multiplicidades defendido em outros pontos pelo mesmo. Talvez o grande problema encontrado a partir de agora nas elaborações dele não seja a dessacralização da sua importância ou potencialidade reflexiva, mas a demonstração do grande ruído e confusão na forma de se dizer ou desdizer o ambiente do pensamento em que trabalha as perspectivas metodológicas ou processos de abordagem da pesquisa impostas à publicação científica. Especialmente a publicação que se orienta para as luminaturas do olhar, da observação, das formas de pesquisar e de conhecimento. A partir desses conflitos a responsabilidade pela eleição do que se diz ganha o cunho qualitativo que põe em xeque a importância do que se diz versus de quem o diz e de onde diz.

A poética na dinâmica descritiva de conceitos formou um agrupamento de vísiveis e invisíveis dentro das filosofias. Não é possível prever exatamente quem criou o quê, não que isso se faça realmente necessário, mas tornou-se fácil invadir um espaço inócuo na concentração de idéias imprecisas de certos autores e até mesmo relacionar o que se diz com um movimento do pensamento. Ficou esparso e complexo conectar a coerência dos discursos que se alastram por uma gama de variedades filosóficas e muitas delas com tons de contradição. É bem verdade que num tempo onde as autorias são totalmente discutíveis fica cada vez mais legítimo o ser indeterminante, porém algo pode margear um limite tênue entre o processo de subjetivação coletiva singular legítimo e o descuido fabuloso que beira a processos enfraquecidos. Apesar de outra gramatologia ser expressiva para apontar ou florear muitos conceitos que desde meados do séc. XX passeiam pelos textos e reflexões científicas, partir de um pressuposto performático para dourar a pílula é uma das práticas mais evidentes no dessarollo de textos encontrados nas mais variadas e recentes publicações das academias. Principalmente pelas mãos dos sociólogos estetas e filósofos da complexidade. M. Maffesoli parece ocupar-se bastante pela provocação e toque sensível ao leitor na arte de possuir as frases com devires poéticos para a escritura. A beleza cede, contudo, ao incômodo de certas contradições que traz apesar do esforço estético. Converter a um estado de erotização e sensualidade um processo que inaugura a atividade de um pensamento, como faz M. Maffesoli, é sentimentalmente agradável não fossem as extensões totalitárias do discurso. Ao se apoiar em certo momento nas locuções da filosofia grega à física contemporânea, chega a lembrar aquilo que é é, pois o que existe existe, e o que não existe não existe - Parmênides - e define atribuindo à máxima grega um status de bom senso. Mas onde estão as linhas do que não existe ou quem pode prever realmente a inexistência, seria a morte do provável ou o acobertamento do ainda não descoberto, da dúvida. O bom senso se ocupa quase de uma condição moral nesses termos. Esse espaço do que existe ocupa-se por sua vez da incerteza que invade uma camada clandestina, onde se pode descer a sonda mesmo que se diga que esta se perderá a certo nível de profundidade. Em seguida M. Maffesoli retrocede ao propor que talvez não seja bem assim, pois a realidade especifica tem sua parcela de quimeras e imaginações que não podem ser negligenciadas. Convoca dessa maneira o caráter formular para a busca da significação de um fenômeno em vez de focalizar sobre a descoberta de explicações casuais. Mas a causalidade da negação é um aspecto restritivo que duela circunstancialmente com a possibilidade por sua vez da negação da causa. Na continuidade cita o exemplo da psicologia Jungiana que substitui a pergunta: por que tal coisa aconteceu? pela questâo: a que fim aconteceu?. Mas ainda traria a seguinte pergunta: aconteceu o que aconteceu? Esta seria portanto a negação da causa - do absoluto -, uma espécie de repatente do que foi considerado como absoluto.

Para fazer fluir, até onde percebo, a perspectiva flexível do olhar M. Maffesoli se utiliza de um conceito: o posicionamento acariciante. O acariciante para M. Maffesoli é um trato delicado para o procedimento que concorre com o mundo, ou seja, que caminha com este. Define, dessa forma, a capacidade de dizer ao mundo como ele é, mesmo que na parte ainda subterrânea, segundo posso prever. Com isso, pretende não reduzir o real mas trabalhá-lo numa perspectiva epifânica. Apresenta algumas perspectivas para dar a direção segura ao real como fator delimitante do pensamento, embora não pareça possível a tentativa de alargamento do conhecimento tendo sempre como a medida o real. A partir de que real se elabora? Um absoluto? Para ele a especialização do conceito moderno, é respondida pelo holismo da progressão orgânica e a economia burguesista, ocupada pela ecologia pós-moderna, como descreve em seu texto. Pondera que tal atitude percorre o caminho semelhante dos alquimistas medievais com tons de aspiração à Grande Obra e sugere a superação metafísica pela aceitação do ser. A imanência no lugar da transcendência? As catarses são possibilidades imanentes e a memória das vozes também? A própria elaboração de uma ecologia pós-moderna ao que Guattari explora como outra ecologia, mais afetiva, é uma ecosofia. Nesta, processos de sensibilidades são marcados justamente pelo alquímico, numa química de sensibilidades e em resposta a blocos inteiros de subjetividade coletiva que se afundam ou se encarquilham em arcaísmos (Guattari). Foi a tentativa do real e absoluto que nos propuseram um falso conceito de transcendência a partir da soberania histórica e entronização do divino e em particular o transcendente freudista, totenista, que insiste em obcecar nossas maneiras de sustentar a existência da sexualidade, da infância, da neurose numa tentativa de propor o real e estar-se continuamente naufragados em sistemas do real, atravessados por entidades fantasmagóricas hereditárias e incapazes de projetar um futuro que não aquele ao qual se está andando em círculos. Em Maffesoli os reais parecem estar funcionando como centro reguladores de objetivos e nunca de atravessamentos, embora ele pareça propor certo devaneio e amplitude, mas os passos evidentes são confusos e o caminho estreito. Acredito que o concebido como real, se é que existe realmente, para ser descoberto é preciso navegar na opacidade ou escuridão, e mesmo estes caminhos podem ganhar status de realidade. Mas até quando? Para M. Maffesoli as luzes parecem ter que estar todas acesas pois, parece impossível o efeito tátil mesmo no escuro. Tudo tem que estar claro, visível, transparente, transindo para o equilíbrio. Outra questão que se impõe nesse momento seria de que real ele está tratando, pois, se a definição percorresse o sentido de real para Lacan seria o Real que não pode ser simbolizado, intransponível, localizando-se na esfera do indizível, em alguns casos do próprio grotesco e situado nos limites e barreiras humanas, onde ele enfim esbarra, onde as palavras fazem falta e onde os significantes não podem ser encontrados para a expressão desse Real.

Outra posição bastante desconfortável se elabora pelos princípios que ele traz da constituição da sociedade. Ao dizer que uma sociedade não existe senão enquanto se manifesta exteriormente logo, somente a partir daí, toma sua forma, me faz questionar o que se pode fazer com as perspectivas da reforma ou da deformação possível intrínsecos à microssociologia. O acontecimento formal é um dos princípios mais angustiantes para os sociólogos que pensam a sociedade pelo princípio e fim.

A sociedade não é, como os sociólogos pensaram muitas vezes, um todo unificado e bem delimitado, uma totalidade, produzindo-se através de mudanças evolucionárias a partir de si mesma, como o desenvolvimento de uma flor a partir de seu bulbo. Ela está constantemente sendo “descentrada” ou deslocada por forças fora de si mesma. (HALL, 2005, p. 17).

As forças empregadas por M. Maffesoli no caráter didático proposto no texto parece se ocupar de um arrebanhamento para vários exercícios de sensatez ou de coerências em relação aos métodos exploratórios para o conhecimento. No momento em que os conselhos são estigmatizados como inúteis, essa perspectiva colabora no mesmo sentido. O conceito de visão frontal e visão lateral, proposta renascentista e barroca respectivamente, produz, de acordo com o autor, a dicotômica relação entre o que é estável, eterno e invariável e o que é transitório, cambiante e frágil. A distinção metafórica em nada perturba, o problema surge na promessa de uma contradição onde havia o sentido do real , do raciovitalismo, do cada coisa é sua própria representação, da vida social tal como ela é, a recusa do céu das idéias em nome do aqui e agora etc. Numa visão otimista é provável que o autor esteja ironizando tal como o próprio título Elogio da Razão Sensível em oposição cômica ao Elogio da Loucura de Erasmo de Rotterdam ou talvez perfazendo humoristicamente o Elogio de Busíris, de Polícrates. Para essas impressões apenas sigo alguma pista através da obviedade ululante em que ele escreve: Esse conhecimento ainda está por explorar e até perfeitamente prospectivo, num mundo movente onde todas as certezas são questionadas. Nada mais ingênuo do que um autor da contemporaneidade cumprir o papel de arauto escatológico dos instrumentos de mudança. Crise? Caos? Como se fossem novas circunstâncias, realidades, alarmes. Não há crise, nem caos, nem alarmes o que existe é uma situação crítica, caótica e desde a fundação do mundo, um dia que nasce atrás do outro, já é alarmado. Ao que parece, ainda deseja propor um algo ordenado para o universo do conhecimento, mesmo sabendo ser na ordem do acaso, do quase quântico em que as realidades estejam móveis. Enquanto a proposta de M. Maffesoli parece suspeitar a transgressão, o background é o da mais latente mornidão sem agressão às formas aparentes, propondo equilíbrios e quantificação de forças. Ainda torna presente a costura mimética de uma profusão de citações cujos conceitos revelam-se esparsos e sem fluxo provocante. Exemplo disso é a trilogia teorema para a descrição: pensar ou buscar (mosthai), mostrar (deiknuen) e escrever (poiein) para suscitar a provocação à trilogia do método de Bergson: duração (durée), memória (mémoire) e impulso vital (élan vital) que diferente da descrição de M. Maffesoli, inscreve justamente o que não se escreve mas o que se intui. Vejo que o sentido não é de oposição mas de refiguração. O mais satírico vem no capítulo seguinte cujo assunto de abertura é justamente A intuição e novamente vem a proposta de fazer sobressair o que já está aí como um discurso basal e fenomenológico. Para ele a intuição coloca-se em jogo uma visão central que, justamente, não é indireta mas, antes, enraíza-se profundamente na própria coisa, dela se nutre e, portanto, dela frui. E apesar de citar o próprio Bergson se perde numa recostura dissolvida em propostas que mais parecem uma grande colagem de diversas filosofias, fragmentadas e retiradas de suas potências, sendo mais do mesmo ou da tentativa de uma melhor forma do mesmo de conteúdos já explorados em outras obras mais influentes. Contudo, não é possível negar passagens muito bem construídas que funcionam como aforismos na generosidade que oferta ao didático, ou a perspectiva de sê-lo. Como exaltei no começo do texto não é possível desmerecer nem denegrir la tête intelectual de M. Maffesoli. Não se trata disso e seria muito precipitado de minha parte. Talvez lamente, diferente ao projeto do título, não construir algo mais elogioso a sua publicação, uma vez que é improvável, diante do seu texto, segundo o próprio autor, deixar meu eu crítico se dissolver naturalmente para melhor ouvir a sutil música nascente .

Faça entrar o próximo músico, por favor.


Referências Bibliográficas

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.

MAFFESOLI, Michel. Elogio da Razão Sensível. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1998.

DELEUZE, Gilles. Bergsonismo. São Paulo. Ed. 34, 1999.

___________. Mil Platôs, vol. 1. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995.

PONTY, Maurice Merleau-. Fenomenologia da Percepção. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

GUATTARI, Félix; ROLNIK, Suely. Micropolítica: cartografias do desejo. Petrópolis, RJ: Vozes, 1986.

__________. As três ecologias. Campinas, São Paulo: Papirus, 1990.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.

sexta-feira, 23 de abril de 2010

O Desvelo existencial da palavra - das formas de imitar e repetir



Para os africanos antigos quando se falhava com a palavra a transmissão e testemunho da história oral ficavam comprometidos - estragados. Ora, se passado e presente convivem conosco em graus hierárquicos diferentes, a palavra é a exibição tácita da verdade, do acontecido, do vivido, que regula as noções dos acontecimentos. Quem viveu falou, elaborou, escreveu. No tempo das incertezas virtuais, da grande falha exibicionista da wikipédia e similares, tantos que escrevem e adoram leitores esquecem ou sequer observam o valor da palavra ou da riqueza do que é dito na transmissão. Não proponho uma moral sobre o ato de usá-las, principalmente desfiladas nas frases, mas ressalto liames éticos e estéticos de suas aplicações.

O imaginário coletivo é remontado pela palavra em visões muito particulares, logo, a palavra vai onde invade e cabe. Assim como é impossível viver a experiência do outro não poderá ser possível lhe roubar os sentidos das palavras, soltas ou na sentença, simplesmente ao reescrevê-las em discursos próprios. A mesma situação se dá na captura de aforismos. Toda palavra é memória de algo que, ao se parecer com o que somos ou desejamos, nos propõe algo transcendente. Do contrário é a decadência da auto-afirmação inócua sem sentidos de realidades que nunca serão assumidas ou verdadeiramente sentidas. Ao passo que o valor das palavras é perdido os escritores performatizam cada vez mais seres repetíveis, imitadores ou piratas, roubando frases e palavras tentando enfiá-las em seus contextos mais diversos. Fazem isso com Clarice, Deleuze, Nietzsche, Orson, Vinícius, Quintana, Gullar e tantos outros. Caprichosos, são viciados por se apoderar de conceitos para o panorama cômico, feito atores que se apresentam no silly paper fadados a percursos ausentes de seus trajetos. A maioria dos que estão ávidos por liberdades não cruzam um passo a frente de suas próprias mediocridades para saltar ao abismo existencial. É um ideário vazio.

Dos assuntos do outro nunca entendi,
desde que me fosse dado a primeira palavra.


A recorrência do roubo a palavra é mais evidente porque aparentemente esta se mostra mais fácil de ser manipulada do que a música e outras matérias primas das artes. Os textos, palavras e conceitos dos outros vivem para ser encarnados, quando são encarnados, embora o caminho de apropriação seja tênue e possível de produzir apenas cópias fajutas da vivência do outro num retrato ordinário da associação.

Transimitação

A cópia é fenomenológica uma vez que se copia desde as práticas do cotidiano até propriamente as idéias e contradições do outro. Imita-se a fala, a maquiagem, a roupa, o gesto, a preferência, o jeito de odiar, de amar e inclusive a palavra. Na perspectiva de um corpo irresolvível afeta-se no geral pelas realidades imitáveis das celebridades, instantâneas ou não, dos aspectos que passam pela voz e locuções dessas pessoas. A outra realidade difícil é a originalidade ou criação original, resolvida de modo anárquico pela transcriação num processo de avanços adaptativos ou reelaborando o já criado.

O materialismo histórico faz o elo de ligação da cópia. Está imbricado no processo de produção em série, manufaturas, na instauração da técnica, no aprimoramento das técnicas. A substituição do processo singular atende a um maior número de consumo para mais do mesmo, por onde o banal se afirma sem as condições do olhar com cuidado, do um-a-um. Agora tem-se o one-to-one divididos em outras formas do processo capital das palavras na produção dos textos ou discursos nos painéis da atualidade de blogs como este, jornais on-line, revistas eletrônicas, sites etc. Palavra não é repetição. As palavras encarnadas e expostas não vêm de um esforço da pesquisa, da elaboração suada e da cópia. Palavra é vírus, vai do axiológico à contaminação.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Aforíntimos (2)

Falta loucura, falta nada. Falta calma e falta filtro. (Milena Paladino)

Os outros lugares são espelhos em negativo. O viajante reconhece o pouco que é seu descobrindo o muito que teve e o que não terá. (CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis.)

A 'deserotização' da vida cotidiana é o pior desastre que a humanidade pode conhecer...é que se perde a empatia, a compreensão erótica do outro (...) (Franco Berardi, Bifo)