sexta-feira, 25 de abril de 2008

Gildes Bezerra, voz do verso e do avesso.


Talvez você não o conheça,
mas ele sabe muito bem quem é você
e o que se passa aí dentro.


O rosto brame rugas e ainda os cabelos, contorno branco do rosto, espelham perfeitos os setenta e poucos anos. Ao telefone, de pausa em pausa, respeitando o assunto, tranquilamente desmantela seus temas, e, daqui a pouco um poema interfere nossos campos falantes. Assim é um oco do tempo quando a conversa é com Gildes. Uma das melhores coisas da face da terra. Deveria existir um guia para isso assim como aquela publicaçãozinha dos “1000 lugares para conhecer antes de morrer”. Mas Gildes Bezerra, poeta mineiro, nascido na Paraíba e formado em Horticultura é um pequeno castelo para ser visitado. Seu principado de textos dá mais piedade e êxtase que literatura modalizada. Chego a ter pena do amor depois que este é vitimado por seus versos, chego a ficar sem graça depois de cada poema. Mas que final? Não acaba. E quando seus versos viram canções nas mãos de mestres cantadores! Nos´inhora!


Em 1999 ouvi o Cantigas de Abraçar[1]. Almanaque musical duplo e ontológico de Dércio Marques. Uma obra musical que torna possível múltiplas existências. No acervo do CD 3[2] canções que me apresentaram o texto de Gildes. Foram chaves que abriram outras portas da minha vida. Sem brincadeira. É uma face da língua portuguesa anexada aos sentimentos humanos burilada na forma artística e que respondem ao mais profundo de nossos interesses. Gildes é um artesão do belo, um modelador de sentimentos, um espelho para a natureza que está dentro e fora de nós. É perito em coração, saudades e luas.

Minas da Lua
(Gildes Bezerra)

A lua nasce do ventre de Minas
Entre colinas e quaresmais
E eu ponteio a viola enfeitada
De fita encarnada
Pra lua escutar
Tambem as serras de Minas são belas
E são tão altas que de cima delas
Deus olha a terra
E a lua que banha as belezas Gerais
E com certeza o céu e o chão
Daquele sertão
Que e Minas de lá
E as estrelas no céu são boiadas
Que de madrugada
Repastam a paz
De noite Minas se enfeita de prata
Se esta no cio, se deita na mata
E então beija o céu
Fica prenhe de lua, de luz de luar

Eu sei que Rubem Alves[3], este famoso e digno autor, pediu a Gildes versificação para alguns de seus livros e que Ivan Vilela[4], exímio artista, fez música a partir destes. Fico honrado e orgulhoso por Gildes. E também por tantos outros grandes artistas que são parceiros dele[5]. No começo deste ano, em 2008, fizemos uma canção. Essa moda chegou num momento próprio, a vida dava retrato à metafísica desse poema. Daí fiz a canção e co-autoramos:

Tempo Nublado
(Duda Bastos/Gildes Bezerra)

A chuva fina e um coração faminto
Corre o perigo de ser infeliz.
Um sonho embriagado de absinto
Canta o silêncio, porém nada diz.
Ai quem me dera que o sol chegasse
E iluminasse um coração faminto
E este ontem que, quando passasse,
Levasse a dor que dói e que eu não sinto.

E este amanhã que já não sei se existe
Não ilumina um coração faminto.
E a velha lua nova sempre insiste
Em pouco alumiar o labirinto.
Ai quem me dera morta a angústia viva
Que quando mais aflora mais se enfronha
Nessa descrença que se torna ativa
Quando se luta mais do que se sonha.

A poesia é muito difícil. É um dilema da percepção. Está aglutinada em compreensões complicadas. Nossas culturas não são irmãs da poesia, elas são irmãs dos balanços, da ginga do corpo. Para ler ou ouvir poesia é preciso tato e retrato. É como disse Gildes: precisa dois poetas, precisa um que escreve e outro que lê. Precisa do espírito de poeta, se transportar a um estado de poesia. E conta que Chico Buarque disse um dia: “se um artista precisa explicar a sua obra a alguém, um dos dois é burro”. Na minha opinião Gildes é simples. Não é poesia concretista ou lisérgica. Mas é insana. É amorosa e fotografa os campos culturais do Brasil e dos afetos humanos. Ele é simples porque transparece em poucas linhas certas complexidades da vida.

Cissiparidade
(Gildes Bezerra/Nestor de Hollanda)

Cantaram canções doloridas
calaram seus cantos depois
se emudeceram sem vida
se dividiram em dois.

Saciaram na mesma nascente
a sede que o ventre dispôs
se desgarraram da fonte
se dividiram em dois.

Ouviram as mesmas histórias
do livro que o sonho compôs
fecharam as suas memórias
se dividiram em dois.
Jantaram a mesma incerteza
comeram ciúme co'arroz
se levantaram da mesa s
e dividindo em dois.

Choraram os rumos partidos
que o tempo jamais recompôs.
Seguiram caminhos doídos
despedaçados em dois.

Gildes seguirá assim, pousando em leves tintas, pinicadas de canetas e teclas sobre o papel de suas memórias, cabedal de estrelas. Descrevendo o céu ou desmanchando alguém nos participará sua amizade e gosto pelo ser, isso que só lhe custa oxigênio, alma e outro bem: a palavra, linda, tácita, sem a qual nem...Tristezas em trago. Amor aos pedaços. Dor que move o mundo, parte do atraso. Enquanto para nós seu principal tema, por enquanto, é viver. Viva Gildes!

[1] http://cliquemusic.uol.com.br/artistas/artistas.asp?Status=DISCO&nu_disco=6422
[2]Ou... me ensine (Gildes Bezerra – Luiz Celso de Carvalho), Minas da lua (Gildes Bezerra) e Cânticos (Gildes Bezerra – Dércio Marques)
[3] Conheça Rubem Alves: http://www.rubemalves.com.br/
[4] Conheça Ivan Vilela: http://www.ivanvilela.com.br/
[5] Gildes tem músicas em co-autoria com: Amaury Falabella; Amaury Vieira; Arlindo Maciel; Cristina Diniz; Cylene Araújo; Clóvis Maciel; Dércio Marques; Fernando Salomon Bezerra; Gereba; Ivan Vilela; Kátya Teixeira; Luiz Celso de Carvalho; Marcos José Marques Machado; Marcos Leite; Ir. Miria Kolling; Nestor de Hollanda Cavalcanti; Pereira da Viola; Plínio Ribeiro Leite; Renato Kefi; Rubinho do Vale; Uíles de Morais; gravadas por: Ivan e Pricila; Grupo Sol; Clóvis Maciel; Luiz Celso e Jorge Murad; Déo Lopes e Paulinho; Pedra Azul; Rosane Reis; Rubinho do Vale; Lucinha Bosco; Dércio Marques; Saulo Laranjeira; Uíles de Morais; Pedro Lima; Pereira da Viola; Titane; Ruth Staerke e Laís Figueiró; Coral Madri’Art; Pe. Vanildo; Pe. Jonas Habib; Ponto de Partida (Grupo Teatral) e Coral da Ir. Míria Kolling.

sábado, 19 de abril de 2008

Ensaio sobre o equívoco (ou Das inúmeras bobagens daquele filósofo)

Esbulho à entrevista[1] de André Comte-Sponville à Revista Época[2]

“ As moscas da Praça Pública (...) A praça pública está cheia de solenes bobos e a multidão vangloria-se dos seus grandes homens; neles saúda os senhores da hora presente (...) Não ergas a mão contra eles. São inúmeros; o teu destino não é tornares-te enxota-moscas.”
“Assim falava Zaratustra” F. Nietzsche

Naquelas horas, em Brasília, para aplacar o tédio, posto que estivesse num banco duro de um pequeno parque, eu contemplava algumas pessoas de idade e outras esquisitas a passear seus cachorros horríveis[3]. Possuía também, minutos depois, meu cachimbo e uma revista Época daquela semana. O frio era ameno e eu fazia hora numa das pequenas praças-jardins de um dos blocos de prédios. Tinha tempo de sobra para ler a Época, embora ela não merecesse.

Deparo-me, assim que começo ler, com assertivas missionárias resolvíveis para a “felicidade”. A empreitada parte desse indivíduo considerado pela revista “um dos mais respeitados filósofos e ensaístas da atualidade”. Não tenho nada a ver com seus méritos, são todos dele. No entanto, minhas tripas reclamam no mesmo instante que leio o entrevistado colocar em seu precípuo exórdio[4] respostas a perguntas, quase menos capazes, pistas e fórmulas para a “felicidade”. Em meandros diz que a felicidade é uma busca filosófica e possível de ser encontrada. Uma afirmação, na minha avaliação, demente. Parece uma conjectura Coelhiana [5]de saberes beirando os acervos místicos dos templários ou feiticeiros. Ou quase isso.

Comte-Sponville, em suas respostas, faz da felicidade uma busca filosófica. Para ele a felicidade se comporta como algo possível a ser encontrado no final de um processo. Ele parece pragmatizar – ou plastificar - um ideal humano. É óbvio que a felicidade converte-se num ideal pois habita no campo das idéias. A felicidade é uma ideologia. Para ele é como se fosse um produto. E é viável seguir uma idéia, ou o conjunto destas, que podem proporcionar a felicidade. Esse filósofo convoca elementos simbólicos que apóiam algumas ideologias mal inscritas em campos de felicidade. São modelos muitas vezes reacionários, capitalísticos que embromam a temporalidade da vida. Potencialidades morais. Tais poderes pregam sensos comuns e atuam em produtos valorativos tais como o modelo de família, imbecis felizes, ateísmo, riquezas, etc. A dificuldade de André está no campo valor daquilo que implica uma construção específica do Ideal de felicidade. O discurso é positivista e pessoal. E existem milhares de seres matriculados nessa forma de vida. Ele, de certo modo, está certo enquanto são em sua maioria, na sociedade, os seres massacrados sob a égide de emoções pré-fabricadas. Adeus a singularidades.

Em uma de suas passagens revela que a esperança é um agravante para se encontrar a felicidade. Como se esta estivesse por aí perambulando, podendo ser descoberta a qualquer instante. Um produto de vitrine para ser adquirido por certa quantia, desde que se possa pagar. O autor ensurdece com seus formulismos de felicidade. Para ele a esperança é um achado de apenas desejar o que não se tem: “porque só esperamos o que não temos”.

Respiro com dificuldade. Esperança não é isso. Não está na dinâmica da posse. O fenômeno da expectativa é um dado desse processo de acordo com uma das principais virtudes do ser: a paciência. Trata-se da natureza expectante do indivíduo absorto numa sociedade de lutas para viver ou sobreviver. O homem expectante aguarda otimismos e vontades que o estimulam a continuar. Mas, continuar a quê? Inicialmente ao aprendizado que nutre esse processo. E não ao propósito enfadonho por resultados, pelo tesouro escondido, pela cura. A felicidade para esse materialista mais parece um produto enlatado escondido atrás de um rótulo. Esperar é uma profunda experiência humana. É um sabor audacioso e em certos casos uma questão fatídica.
Por detrás de seu ateísmo revela símbolos sincréticos que falseiam o amor como algo imbricado na reificação, algo solto no espaço, algo de vínculo apenas orgânico. Faz do amor uma propriedade fisiológica como se pertencesse ao metabolismo do corpo. Comte-Sponville trata ainda a fé como elemento desestruturador psicológico. Quando na verdade as experiências mostram algum contrário . Em outros casos o cárcere dentro de uma religião e a libertação desse torna-se uma experiência que faz do ser um minerador ao centro de suas convicções e o capacita a tornar-se apto a descobertas (partidas e retornos). Ao mínimo uma compensação sensata: o que aconteceria sem a fé? A sociedade talvez mergulhasse na barbárie. Outras vezes, acho, isentos de fé; as ocupações guerrilheiras, seqüestros - relâmpago e balas perdidas; pareceriam brincadeiras infantis. E ainda: o capitalismo tsunami acabando em poucos segundos com iniciativas decanas ou seculares de negócios. E mais a sociedade “viking” compeliria os seres a subjugar pela força. A fé parece equilibrar a equação estabilizadora da sociedade tendenciosamente maniqueísta.

Sou cético em relação ao tecido social sem articulação espiritual. Sem a metafísica a humanidade fica óbvia. Mas falo também ao deslocamento pelo divino em atos e incursões a um ser superior. Ao se pensar na dimensão do seu próprio corpo, os ateus imaginam que o elemento vital parece sustentar-se ou por princípios físicos ou mágicos. Vamos escolher? Outros ateus, descrentes pesados, encontram assertivas menos industriais ou publicitárias, mas é visível que Comte não escreva livros, e sim os fabrique. Tal como o seu “O Pequeno Tratado das Grandes Virtudes “, uma bobologia operante que pretende adestrar pessoas para o bem. A cada minuto surge um novo Cristo, Buda ou Maomé. Nada novo sobre o sol. Este livro é mais perto de uma ditadura mascarada em publicação de cabeceira para pessoas mal-amadas. Mas também qual o problema em ser mal amado? Vamos discutir as culpas e traçar um projeto de conversações sem fundamentos. Leia “Ecce Homo” de Nietzsche. Aliás leia os dois. A postura caudatária de André a Frederic chega a ser imoral frente as cópias e deturpações que faz desta lúcida obra e (de quebra) de tantas outras.

Retire o espírito do homem – talvez até o espírito hegeliano[6] - e ele desmoronará. Coloque essa lei, fundamente os atos que agirão em função de idéias moralistas e crendices morais e convocaremos o terrorismo no corpo, mente e sociedade. Expurgo os clichês com os quais esse filósofo se diverte. Não é problema pensar a felicidade, mas é terrível fazer uma enciclopédia de modelos desta para os outros. Assim como a publicação de auto-ajuda é uma farsa. A televisão é mais edificante, um filme de Holywood até. Melhor seria se ele apagasse suas pegadas. Isso não vai acontecer, pois ele lucra fantasticamente sob a roupa de filósofo. Ele é um homem esperto e feliz.


[1] A entrevista pode ser encontrada em http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDG76063-6014,00-A+CONSOLACAO+DA+FILOSOFIA.html
[2] Revista Época n° 450, janeiro de 2007.
[3] Triste o costume de se criar poodles e cachorros em miniatura que mais parecem ratos. Essas pragas brancas e cardíacas infestaram o planeta transformando-o num verdadeiro mundo-cão. Desculpe o criticismo exagerado. Perco o(a) amigo(a) mas não perco a piada.
[4] Aquilo que antecede ao discurso. Ver o esquema aristotélico do discurso.
[5] Paulo Coelho, criador de contos-de-fadas para adultos infanto-juvenis.
[6] Uma esfera última do pensamento humano. É no espírito que está a sua fonte. Mente, para Hegel, se distingue do espírito. Somente o homem, como ser pensante, é capaz de produzir sentidos de beleza. Na verdade, o espírito direciona-se para a existência individual do homem através de seus devenires. O espírito absoluto é uma das necessidades de entendimento do mundo por intermédio de seus aspectos ou arquétipos gerais, que, entretanto precisam de um encaminhamento para o individual. A arte faz essa mediação de forma sublime. O espírito absoluto adquire vida no nível da generalização: pensamos sempre abstratamente e, no entanto, sentimos individualmente. Trecho adaptado da Idéia e o Ideal, de Estética. Coleção Os Pensadores e do texto de Elba B. R. da publicação Cantoria Nordestina: música e palavra.

quinta-feira, 10 de abril de 2008

Luiz Britto, letras e tintas

Vivo desse modo e é como vivo.
Eu só trabalho com achados e perdidos.
Clarice Lispector

Aos visitantes, ouvidores e amigos, uma seara de ventos diurnos – posto que nessas noites de abril quase nada sopre – invadem o simples adentrar da minha sala. Sorrisos rubis se abrem no mesmo instante que os olhos cavam a estética mais vibrante desse lugar: o painel de dois e sessenta por um e quarenta metros. É um casario meso-impressionista, alicerçado em cores vivas e terrais. Pintado a encomenda para uma nova casa que tive, veio em tela viva para ser crucificado ali mesmo. Exposto não decora o ambiente, o quadro tornou-se o ambiente e o resto o adorna. Só descobri meses mais tarde que o painel guardava um autógrafo com dedicatória.

Luiz Britto é baiano de Salvador, tem 65 anos, seus quadros são em algumas centenas, dezenas de esculturas e seus livros 50. De longe um dos pintores mais frondosos e vérvicos que conheço. Exímio baterista de jazz e pinicador de piano – como a si mesmo reclama – gosta de sentar e conversar. Prefere fazer chacota simples com as mazelas sociais e manda desavisados, que levam cachorros para o coco na rua, criarem cavalos no apartamento. Um jeito elegante de mandar os cachorreiros se foder. Isso está lá na calçada, pregado numa pedra. Em outra época havia uma placa de madeira pintada à mão com os mesmo dizeres. E em outra: “Abaixo o som, Kombi de frutas” e eu numa passada rápida de olhos lia “Abaixa o som, filhos das putas”! São retratos simples cheios de humorismos que abrigam o empedernido e sincero olhar de Luiz para a rua que passa. É lenda viva.

Em outras épocas, cansado da velocidade dos carros na pacata Rua Recife no Jardim Brasil, reclamava às autoridades. Elas nada faziam, mas ele sim. Construiu quatro quebra-molas num trecho de menos de 100 metros. Para suplício dos carros de passeio e divertimento da garotada – sim, eu era um deles – nos anos oitenta que ficavam a postos dentro do ônibus escolar para pular quando passasse pelas quatro pequenas muralhas. Atrasava a viagem, mas era estranhamente delicioso. Nem imaginava que conheceria, um dia, o autor dos mesmos.

O escritor e menestrel é envolto, em refúgio urbano, numa das últimas casas pitorescas da Barra. É uma pequena casa, obscura e atravessada por diversas interferências dos dons do artista. Uma simples mata desconvida, de certa maneira, qualquer intruso, mantendo a privacidade da família. Produz intensamente depois que se alforriou de um trabalho cívico, metódico e rotineiro. Aposentou-se para começar a trabalhar de verdade. Por esses dias finalizou o seu 50° livro. Um número muito à frente dos grandes literatos brasileiros. Mas, apesar de seus números, pouca gente o conhece. Alguns gatos pingados, artistas e intelectuais o sabem. Luiz é, dessa forma, um artista embrionário no acervo popular do Brasil. Habita uma fresta perdida, vive numa ninguendade aquém da sua importância para a pulsação histórica da arte contemporânea que acrescenta ao acervo do País. Mas talvez este seja o lugar mais importante para ele: o silêncio. Pelo menos por enquanto.

A pé, generosamente, leva os novos lançamentos para as bibliotecas e universidades, tal como os retirantes em busca de água, só que desta vez ele é a fonte. Em Nova York e outras cidades americanas seus livros ocupam estantes das mais conceituadas bibliotecas universitárias. Suas tentativas buscaram as livrarias daqui, mas veio, em seguida, um resultado ínfimo de projeção. De vendas não sei. Então vai de grão em grão buscando expandir seu universo, mostrando as suas fazendas de esperança. Britto é mais difícil num lugar muito pobre como a Bahia. É praticamente impossível para as mentes lavadas com a água suja da televisão. A TV não é o diabo, suas emissoras é que o são. Inviável para as elites que gostam mais de um sofá do que uma exuberante tela. Chato para a juventude - que sabe apenas escrever o próprio nome.

Ainda lhe resta o nome no conjunto dos pintores mais diferenciados da cidade. As galerias o sabem. Ainda lhe cabe a consideração e apreciação dos grupos que fazem parte e trabalham pela sua mídia de gueto. Pelo menos ainda lhe resta muita saúde pela frente: não vai parar tão cedo. Mas parou de jogar água nos vizinhos barulhentos. Uma grande pena!


domingo, 6 de abril de 2008

Favelinhas Educacionais.


A pedagogia do dominante é fundamentada
em uma concepção bancária de educação.
Paulo Freire

Uma das coisas mais paradoxais que existe são Faculdades Privadas posando de societais. Leia-se: acudindo os pobrezinhos e marginalizados da sociedade com projetos de inclusão, reparação, instrução, formação, o que diabo for. É no mínimo falsidade ideológica. Mas existem projetos e projetos. Não quero dizer com isso que não existam trabalhos frutuosos ou sérios. As filantropias estão na moda, e, assim como esta, nem todo mundo sabe como usar.

Na verdade trata-se de grupos quase carnavalescos – docentes - que pleiteiam adesão de foliões/estudantes para os abadlomas ou diplomadás (uma adaptação grosseira misturando diplomas com abadás, aquelas indumentárias carnavalescas baianas). Montar um projeto desses é quase montar um bloco. Existe todo o aparato: mobilização humana e confecção de veículos e oportunidades - mas no final é só desfile. Tudo lindo, mas é apenas grito de carnaval. Aqueles outros – os pobrecitos de Jesus - gritam em seus vasculhos de desespero, clamando formação ocupacional e a continuidade desta, numa construção global de campos educacionais. É aquela história: todo menino do Pelô sabe tocar tambor, mas não sabe ler.

Quem financia a sustentabilidade desses projetos? As IES[1] particulares não o farão, mas bolarão o projeto. Mesmo as grandes empresas não sustentam suas criações, é só observar a situação do Liceu de Artes e Ofício da Bahia, enquanto patrocinado e abandonado por uma grande empresa que financiava sua pers-ex-istência [2]. Sabemos as crises dos últimos tempos: estudantes largados no meio de seus trajetos e professores e funcionários com salários atrasados.

A casa só cai onde o dono não anda.

Um grande banco também faz. Há 100 milhões de anos geram sustentabilidade na Cidade de Deus[3] com vários projetos educacionais. Mas é claro! Uma empresa de lucro bilionário[4] tem que fazer uma gracinha para justificar o poder de seus juros.

Daí diversos grupos docentes se organizam para posar de assistentes sociais com fins lucrativos. Tudo isso a fim de justificar seu compromisso e ativismo nas IES particulares onde ensinam. As IES por sua vez sentem-se palosas e elegantes por estar cumprindo com o seu dever. Sentem? Tal qual o padre com sua paróquia, o médico e seu paciente, o marido e sua mulher. A consciência empresarial – se é que existe – agora se processa no sono dos justos, típico dos que foram encostar a cabeça no travesseiro depois do dever cumprido. Será?

Paulo Freire não era um utopista. Imagino que neste momento se revire no túmulo. O que fizeram com a sua Pedagogia do Oprimido grita aos céus. Confundiram vocação social com vocação assistencialista, educação com esmolação. Distorceram tudo em prol de propaganda capitalística e eleitoreira. Trabalharam para soltar o homem, mas não o libertaram.


“O movimento para a liberdade deve surgir e partir dos próprios oprimidos, e a pedagogia decorrente será aquela que tem que ser forjada com ele e não para ele, enquanto homens ou povos, na luta incessante de recuperação de sua humanidade[5]".


Vê-se que não é suficiente que o oprimido tenha consciência crítica da opressão, mas que se disponha a transformar essa realidade. Trata-se de um trabalho de conscientização e politização. Esses trabalhinhos chamados de societais de algumas IES particulares servem apenas para colocar esse outro no lugar dele. Esse outro “pobre” é quase como um índio colonizado. No sistema bancário de Freire, uma vasilha para ser preenchida pelo conhecimento. Não dá pra lavar a vasilha. O coletivismo está mais para semelhança etimológica com a lotação do fim da tarde do que o sentido ético que representa.


Tão estúpido quanto tudo isso é o programa televisivo da Regina Casé. Aquele que aborda os favelados com o projeto de resgatar ou promover a cultura e artes desses agrupamentos extra-intra-sub-urbanos. Sim, porque a favela quase não faz parte da cidade, ela entra como um adereço igual aquele do carro alegórico da Sapucaí. Nisso as cidades brasileiras são exímias carnavalescas. Pelo programa da Regina parece que existe algum grau de desejabilidade ou conformação do Brasil com as favelas ou com a vida no subúrbio ou periferia imersa nos genocídios, tráficos, precariedade infra-estrutural , oficinas de desmontes, grupos de extermínio dentre outros podres. Mas a produção artística é pautada como linda e maravilhosa. Aliás, a apresentadora em seus coquetéis nada deve ter de suburbana, mas porque está no jogo da aparência, na sujeição do tosco, posa de líder comunitária fingindo que vive na circunstância do pobre.


Enquanto isso nas FDAPSM - Faculdades Deus me Acuda para Sobreviver no Mercado - se inventa (cata por aí) uma instituição carente pra poder ajudar. Quem sabe assim o pessoal olhe melhor e faça uma caridade de inscrição nos cursos ofertados. Resta apenas uma versão menos idiota do clamor carnavalesco: “bota o pé no chão...”.

[1] Instituição de Ensino Superior
[2] Trabalhadores do Liceu protestam nesta segunda. Disponível em: http://www.atarde.com.br/cidades/noticia.jsf?id=843577. Acessado em 02 de abril de 2008.
[3] http://wikimapia.org/1247348/pt/
[4] O Bradesco registrou lucro líquido de R$ 4,007 bilhões no primeiro semestre de 2007, valor 27,9% maior em relação aos primeiros seis meses do ano anterior e o maior na história do banco para o período. Fonte: http://noticias.uol.com.br/ultnot/efe/2007/08/06/ult1767u99520.jhtm. Acessado em 03 de abril de 2008 [5] FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 15. ed. São Paulo : Paz e Terra, 2000.