domingo, 30 de março de 2008

Elomar, aquele grande país.


As canções do Sertão Profundo de Elomar Figueira Mello.
Apresentação para o Curso de Letras da UNIME – Lauro de Freitas, 30 de outubro de 2007.

Próximo ao átrio receptivo da Casa dos Carneiros, pelo qual se chega através de uma rampa, está a Sala Dos 7 Candeeiros. Hoje, um pequeno teatro para 200 convivas que se abre em meio a um local “perdido”, deslocado dos circuitos culturais de qualquer centro urbano. A Casa dos Carneiros fica num povoado chamado Gameleira, localizado a 19 km de Conquista. Um ambiente roçaliano, seco, áspero nessa quadra de outubro. Uma locanda envolta em pó e fumaça de lenha. Bonitos, os candeeiros dispostos nas paredes - seis dentro e um fora - completam a mística daquela canção: “Lá na Casa dos Carneiros, sete candeeiros iluminam a sala de amor. Sete violas em clamores, sete cantadores, são sete tiranas de amor, para amiga em flor que partiu e até hoje não voltou[1]”. Para quem conhece e chega, abre-se um portal atávico. Pirimpilhação de estesias. Para quem não o sabe, não existe catarse. O anfitrião, já fora das horas mortas[2], degusta café e pão. Sinal de que cheguei atrasado. Em seguida não demora a contação de histórias começar, e notícias de outras sendas são permitidas numa troca aprazível de saberes e novidades. Fico impressionado com o cuidado e amor na construção do teatro. No sonho do Bode, como o chamo carinhosamente, ele acorda espetáculo. Embora rejeite a exploração de sua imagem, se permite a câmara cênica para performances. Vou e volto em circunstâncias e a imagem que me toma é cheia de reverberação, nas histórias do cancioneiro Elomariano. Aquela acústica teatral cria e dispersa sonidos, e, logo testo o ambiente, a pedido do próprio Elomar. Ele fica paloso em reconhecimento ao seu grandioso artefato, ao templo da cantoria que torreou.

Perto dali, longe de qualquer razão mercadológica, Elomar refugia-se para distante dos olhares e companhias desnecessárias. Sua economia parece muitas vezes, segundo Jerusa Pires Ferreira, ser uma vingança ao próprio corpo. Talvez. Todo artista traz sua parcela de vaidade e os anos são como lâminas a lhes cortar. Ferido, fica-se exposto nas rugas difíceis. Mas encontro nesse fato do meso-exílio desse cantador, a presença cavalheiresca que precisa ser visitada. E eu preciso visitá-lo.

Ouvir Elomar é sentir algo afogado na ninguendade[3]. Não é música brasileira. É dramático e impossível de territorialidade. Ele inteira um país. Como o Vaticano dentro da Itália. A MPB ou variações dos títulos para a música brasileira, de acordo com o texto academicamente instituído como brasileiro, não encontra enunciados na sua musicalidade e poética. Não me parece de lugar algum. Elomar não tem a cara do “nacional”, de baluarte da pátria ou coisa parecida. Nem tão pouco o estandarte da música regional. Mesmo porque o regional, visitando Bourdier[4], é um terreno perigoso, que traz mais ficção que visibilidade. Aliás, que visível? E esse negócio de cultura regional, música de raiz nem existe (como sempre, isso é outro assunto). Mas o que é então?

É sertão profundo.

Uma concórdia para além dos costumes, cultura rural ou saberes lingüísticos. Panacéia de memórias esparsas no tempo e lugar. O sertão profundo é mundo filosófico, outro fulgurado por um sol diferente. É a impossibilidade metafísica do desprendimento, são altitudes poéticas e musicais que se abrem em resultantes. As obras de Elomar não são resultados de alguma cultura específica, mas de algo que vem de longe, de outras quadras, de outra física e atravessa o corpo inteiro do artista. Algo que não vem da paisagem, na idéia de Merleau Ponty[5], mas a ela se mistura e completa. A constelação do habitat traz a cultura rural para Elomar, este se reveste do sertânico e a produção artística passeia pelas palavras e linguagens dialetais. Recebe as doses de nordestinidade.

Tudo acidente de percurso.

O idioma sertanês – em suas múltiplas variações do português - apresenta-se como elã na construção do inteligível, na afirmação de labirintos dos versos: “(...) i antes ofreceu o mote, pro saco do saqué, e o cassote c´u pote deixo o quati só cu´a fé de qui dent´o do tal pote inda tinha algum café (...)[6]”. Tudo isso para não ser descoberto facilmente, pra ficar ali escondidinho, vendo o romper gota a gota, da arte profética, sertaneza, escatológica e bela. Para poucos, bem poucos. Distante das esquizofrenias capitalísticas – nem por isso alheio ao metal. Não cede, não empresta, nem vibra com “urbanóides[7]”. Tem alma boêmia e se refaz em alegria contando histórias que lembram mais o Pantaleão de Chico Anísio que as invenções de vaqueiros e comadres da caatinga. Não entende a indústria da cultura artística e não faz pacto com os lobos. Mas se apresenta telúrico, capitão, príncipe, vaqueiro na roupagem de música lúgubre e por demais épica, ofertando generosamente o seu imaginário e causos com ciganos. Ergo todas essas idéias com uma xícara de café forte. As horas arrematam o tempo, que passa lamentavelmente. Mas no cair da noite, lá na Casa dos Carneiros, sete candeeiros iluminam a sala de amor.

[1] Cantiga de Amigo. Letra e música de Elomar Figueira Mello. Presente no CD Das barrancas do Rio Gavião. Direção de Produção: Roberto Santana. Apresentação de Vinícius de Moraes. [S.l.]: Philips, 1973. 1 CD. Distribuído pela Polygram.
[2] As horas da morte de Jesus Cristo, entre 15h00 e 17h00 da tarde.
[3] RIBEIRO, Darcy. O Povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil.
São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
[4] BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.
[5] PONTY, Maurice Merleau-. Fenomenologia da Percepção. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
[6] Desafio, presente no CD : MELLO, Elomar;MARQUES, Dércio; XANGAI, Eugênio Avelino. Auto da Catingueira. Manaus: Sonopress 1984a. 2 CDs. Editora e Gravadora Rio Gavião.
[7] Urbanóides são, de acordo com Elomar, os cidadãos que vivem na Urbis
e discriminam as culturas campestres.

domingo, 23 de março de 2008

O amor é um movimento de contra si

“O amor é um movimento de contra si (...) vai de encontro à vontade choramingosa de ser amado, que nos conduz, todos, ao psicanalista.”
Gilles Deleuze

Existem razões para ter cuidado quando se pensa o que é o amor. Tido como sentimento, esta ação/sensação humana, pode revestir-se de uma faceta para justificar certa mobilização em prol de afetos e sensações luxuriantes. De fato, o amor nada tem a ver com delicadezas enfadonhas dos temas periodistas das novelas ou das canções. Embora não se abstenha de atividades da libido. Tais delicadezas podem ser belas e traduzíveis como amor, mas certamente é paixão, algo menos relutante que esse amor, embora, a princípio, muito mais empolgante. Podemos considerar como a paixão romântica.

O amor é outro algo, com toda expansividade dessa outridade. Importa a necessidade que não incomoda e a inexistência de objetividade na busca. Não existe razão concreta pelo desejado nem tão pouco uma dependência ensandecedora pelo suporte do amado.

O ser deseja amor. Mas de que isso trata? Por que alguma necessidade é a busca ou a razão da busca pelo amor?

O amor não é obviamente amor como conhecido por aí. Amor é amar na partida contínua pela outridade dos seres e todo seu entorno. O amor não é simplesmente ser amado. Não há solidão em amar, assim como não há tristeza. O amor que dói não é amor. É outra coisa, talvez uma circunstância sofrida em vista de sensações perdidas, em grande parte despertadas pelo desejo humano de saciar sua margem de prazer. A isso se chama definitivamente paixão. Larossa Bondía inclui que na paixão se dá “uma tensão entre liberdade e escravidão (...) uma tensão entre prazer e dor, entre felicidade e sofrimento, no sentido de que o sujeito apaixonado encontra sua felicidade ou ao menos o cumprimento de seu destino no padecimento que sua paixão lhe proporciona”. É importante ressaltar que o autor se refere nesse instante a experiência com o amor, algo que a paixão, em seu caráter essencial não proporciona. Em grande parte pela absoluta falta de tempo, em que se faz necessário o desenrolar de uma experiência, já que toda paixão se faz instantâneamente.

Não há solidão em amar, assim como não há tristeza. Parece que ao amar o desejo pelo ser amado é reconstruído e não há nenhuma perda ou vazio. A paixão é o prejuízo de quem se escraviza à necessidade contínua por recebê-la. Tristezas nascem pela ausência do amor. A liberação desenfreada da condição do amor é a propriedade mais humana que existe, depois talvez se posicionem ódio, raiva, rancor, mágoa e etc. Embora, a mola mestra seja a dor e não o amor a mover o mundo humano. Mas isso é outro assunto.

Amor implica na valorização da existência em seus aspectos de humorismo e do bem-estar (felicidade e paz). É o projeto de ações interiores em direção as expectativas desenfreadas sobre o bem. No “bem” cabem todas as realidades e circunstâncias animadoras da vida, cabe o olhar descamado sobre o projeto complexo que é viver, com suas dores e prazeres, infernos e paraísos. Não se trata, tudo isso, de certa expectativa ingênua, mas de alertar-se constante para o bem e para a referência do amor, na direção de atos e pensamentos amorosos. Atos que são práticas de raciocínios, posicionamentos, ética e afetos em direção ao outro humano.

Esperar pelo amor parece vivenciar a sinistra expectativa da dúvida ou do atraso, numa colaboração angustiante com algo insuficiente. A chegada desse amor não é uma aparição formulada pelo desejo, mas ascende dos atos de existência. As ações vitais que elancam as crenças pessoais, áreas de atuação e territórios possíveis. De certa forma, o amor parece desmantelar nossos poderes interiores de auto-suficiência e indiferença ao conjunto do ser amado. É a élégance de saber olhar ao redor. Um estratagema para uma vida de coisas mais clandestinas, mais alegres, fora das concessões e condições que impedem o verdadeiro amar.