sexta-feira, 23 de abril de 2010

O Desvelo existencial da palavra - das formas de imitar e repetir



Para os africanos antigos quando se falhava com a palavra a transmissão e testemunho da história oral ficavam comprometidos - estragados. Ora, se passado e presente convivem conosco em graus hierárquicos diferentes, a palavra é a exibição tácita da verdade, do acontecido, do vivido, que regula as noções dos acontecimentos. Quem viveu falou, elaborou, escreveu. No tempo das incertezas virtuais, da grande falha exibicionista da wikipédia e similares, tantos que escrevem e adoram leitores esquecem ou sequer observam o valor da palavra ou da riqueza do que é dito na transmissão. Não proponho uma moral sobre o ato de usá-las, principalmente desfiladas nas frases, mas ressalto liames éticos e estéticos de suas aplicações.

O imaginário coletivo é remontado pela palavra em visões muito particulares, logo, a palavra vai onde invade e cabe. Assim como é impossível viver a experiência do outro não poderá ser possível lhe roubar os sentidos das palavras, soltas ou na sentença, simplesmente ao reescrevê-las em discursos próprios. A mesma situação se dá na captura de aforismos. Toda palavra é memória de algo que, ao se parecer com o que somos ou desejamos, nos propõe algo transcendente. Do contrário é a decadência da auto-afirmação inócua sem sentidos de realidades que nunca serão assumidas ou verdadeiramente sentidas. Ao passo que o valor das palavras é perdido os escritores performatizam cada vez mais seres repetíveis, imitadores ou piratas, roubando frases e palavras tentando enfiá-las em seus contextos mais diversos. Fazem isso com Clarice, Deleuze, Nietzsche, Orson, Vinícius, Quintana, Gullar e tantos outros. Caprichosos, são viciados por se apoderar de conceitos para o panorama cômico, feito atores que se apresentam no silly paper fadados a percursos ausentes de seus trajetos. A maioria dos que estão ávidos por liberdades não cruzam um passo a frente de suas próprias mediocridades para saltar ao abismo existencial. É um ideário vazio.

Dos assuntos do outro nunca entendi,
desde que me fosse dado a primeira palavra.


A recorrência do roubo a palavra é mais evidente porque aparentemente esta se mostra mais fácil de ser manipulada do que a música e outras matérias primas das artes. Os textos, palavras e conceitos dos outros vivem para ser encarnados, quando são encarnados, embora o caminho de apropriação seja tênue e possível de produzir apenas cópias fajutas da vivência do outro num retrato ordinário da associação.

Transimitação

A cópia é fenomenológica uma vez que se copia desde as práticas do cotidiano até propriamente as idéias e contradições do outro. Imita-se a fala, a maquiagem, a roupa, o gesto, a preferência, o jeito de odiar, de amar e inclusive a palavra. Na perspectiva de um corpo irresolvível afeta-se no geral pelas realidades imitáveis das celebridades, instantâneas ou não, dos aspectos que passam pela voz e locuções dessas pessoas. A outra realidade difícil é a originalidade ou criação original, resolvida de modo anárquico pela transcriação num processo de avanços adaptativos ou reelaborando o já criado.

O materialismo histórico faz o elo de ligação da cópia. Está imbricado no processo de produção em série, manufaturas, na instauração da técnica, no aprimoramento das técnicas. A substituição do processo singular atende a um maior número de consumo para mais do mesmo, por onde o banal se afirma sem as condições do olhar com cuidado, do um-a-um. Agora tem-se o one-to-one divididos em outras formas do processo capital das palavras na produção dos textos ou discursos nos painéis da atualidade de blogs como este, jornais on-line, revistas eletrônicas, sites etc. Palavra não é repetição. As palavras encarnadas e expostas não vêm de um esforço da pesquisa, da elaboração suada e da cópia. Palavra é vírus, vai do axiológico à contaminação.