sexta-feira, 25 de abril de 2008

Gildes Bezerra, voz do verso e do avesso.


Talvez você não o conheça,
mas ele sabe muito bem quem é você
e o que se passa aí dentro.


O rosto brame rugas e ainda os cabelos, contorno branco do rosto, espelham perfeitos os setenta e poucos anos. Ao telefone, de pausa em pausa, respeitando o assunto, tranquilamente desmantela seus temas, e, daqui a pouco um poema interfere nossos campos falantes. Assim é um oco do tempo quando a conversa é com Gildes. Uma das melhores coisas da face da terra. Deveria existir um guia para isso assim como aquela publicaçãozinha dos “1000 lugares para conhecer antes de morrer”. Mas Gildes Bezerra, poeta mineiro, nascido na Paraíba e formado em Horticultura é um pequeno castelo para ser visitado. Seu principado de textos dá mais piedade e êxtase que literatura modalizada. Chego a ter pena do amor depois que este é vitimado por seus versos, chego a ficar sem graça depois de cada poema. Mas que final? Não acaba. E quando seus versos viram canções nas mãos de mestres cantadores! Nos´inhora!


Em 1999 ouvi o Cantigas de Abraçar[1]. Almanaque musical duplo e ontológico de Dércio Marques. Uma obra musical que torna possível múltiplas existências. No acervo do CD 3[2] canções que me apresentaram o texto de Gildes. Foram chaves que abriram outras portas da minha vida. Sem brincadeira. É uma face da língua portuguesa anexada aos sentimentos humanos burilada na forma artística e que respondem ao mais profundo de nossos interesses. Gildes é um artesão do belo, um modelador de sentimentos, um espelho para a natureza que está dentro e fora de nós. É perito em coração, saudades e luas.

Minas da Lua
(Gildes Bezerra)

A lua nasce do ventre de Minas
Entre colinas e quaresmais
E eu ponteio a viola enfeitada
De fita encarnada
Pra lua escutar
Tambem as serras de Minas são belas
E são tão altas que de cima delas
Deus olha a terra
E a lua que banha as belezas Gerais
E com certeza o céu e o chão
Daquele sertão
Que e Minas de lá
E as estrelas no céu são boiadas
Que de madrugada
Repastam a paz
De noite Minas se enfeita de prata
Se esta no cio, se deita na mata
E então beija o céu
Fica prenhe de lua, de luz de luar

Eu sei que Rubem Alves[3], este famoso e digno autor, pediu a Gildes versificação para alguns de seus livros e que Ivan Vilela[4], exímio artista, fez música a partir destes. Fico honrado e orgulhoso por Gildes. E também por tantos outros grandes artistas que são parceiros dele[5]. No começo deste ano, em 2008, fizemos uma canção. Essa moda chegou num momento próprio, a vida dava retrato à metafísica desse poema. Daí fiz a canção e co-autoramos:

Tempo Nublado
(Duda Bastos/Gildes Bezerra)

A chuva fina e um coração faminto
Corre o perigo de ser infeliz.
Um sonho embriagado de absinto
Canta o silêncio, porém nada diz.
Ai quem me dera que o sol chegasse
E iluminasse um coração faminto
E este ontem que, quando passasse,
Levasse a dor que dói e que eu não sinto.

E este amanhã que já não sei se existe
Não ilumina um coração faminto.
E a velha lua nova sempre insiste
Em pouco alumiar o labirinto.
Ai quem me dera morta a angústia viva
Que quando mais aflora mais se enfronha
Nessa descrença que se torna ativa
Quando se luta mais do que se sonha.

A poesia é muito difícil. É um dilema da percepção. Está aglutinada em compreensões complicadas. Nossas culturas não são irmãs da poesia, elas são irmãs dos balanços, da ginga do corpo. Para ler ou ouvir poesia é preciso tato e retrato. É como disse Gildes: precisa dois poetas, precisa um que escreve e outro que lê. Precisa do espírito de poeta, se transportar a um estado de poesia. E conta que Chico Buarque disse um dia: “se um artista precisa explicar a sua obra a alguém, um dos dois é burro”. Na minha opinião Gildes é simples. Não é poesia concretista ou lisérgica. Mas é insana. É amorosa e fotografa os campos culturais do Brasil e dos afetos humanos. Ele é simples porque transparece em poucas linhas certas complexidades da vida.

Cissiparidade
(Gildes Bezerra/Nestor de Hollanda)

Cantaram canções doloridas
calaram seus cantos depois
se emudeceram sem vida
se dividiram em dois.

Saciaram na mesma nascente
a sede que o ventre dispôs
se desgarraram da fonte
se dividiram em dois.

Ouviram as mesmas histórias
do livro que o sonho compôs
fecharam as suas memórias
se dividiram em dois.
Jantaram a mesma incerteza
comeram ciúme co'arroz
se levantaram da mesa s
e dividindo em dois.

Choraram os rumos partidos
que o tempo jamais recompôs.
Seguiram caminhos doídos
despedaçados em dois.

Gildes seguirá assim, pousando em leves tintas, pinicadas de canetas e teclas sobre o papel de suas memórias, cabedal de estrelas. Descrevendo o céu ou desmanchando alguém nos participará sua amizade e gosto pelo ser, isso que só lhe custa oxigênio, alma e outro bem: a palavra, linda, tácita, sem a qual nem...Tristezas em trago. Amor aos pedaços. Dor que move o mundo, parte do atraso. Enquanto para nós seu principal tema, por enquanto, é viver. Viva Gildes!

[1] http://cliquemusic.uol.com.br/artistas/artistas.asp?Status=DISCO&nu_disco=6422
[2]Ou... me ensine (Gildes Bezerra – Luiz Celso de Carvalho), Minas da lua (Gildes Bezerra) e Cânticos (Gildes Bezerra – Dércio Marques)
[3] Conheça Rubem Alves: http://www.rubemalves.com.br/
[4] Conheça Ivan Vilela: http://www.ivanvilela.com.br/
[5] Gildes tem músicas em co-autoria com: Amaury Falabella; Amaury Vieira; Arlindo Maciel; Cristina Diniz; Cylene Araújo; Clóvis Maciel; Dércio Marques; Fernando Salomon Bezerra; Gereba; Ivan Vilela; Kátya Teixeira; Luiz Celso de Carvalho; Marcos José Marques Machado; Marcos Leite; Ir. Miria Kolling; Nestor de Hollanda Cavalcanti; Pereira da Viola; Plínio Ribeiro Leite; Renato Kefi; Rubinho do Vale; Uíles de Morais; gravadas por: Ivan e Pricila; Grupo Sol; Clóvis Maciel; Luiz Celso e Jorge Murad; Déo Lopes e Paulinho; Pedra Azul; Rosane Reis; Rubinho do Vale; Lucinha Bosco; Dércio Marques; Saulo Laranjeira; Uíles de Morais; Pedro Lima; Pereira da Viola; Titane; Ruth Staerke e Laís Figueiró; Coral Madri’Art; Pe. Vanildo; Pe. Jonas Habib; Ponto de Partida (Grupo Teatral) e Coral da Ir. Míria Kolling.

10 comentários:

Elisa DI mINAS disse...

Tropecei num espaço sem medidas, numa vontade pavorosa de ser alma vagante , num desejo diabólico de ser anjo. Molhei letras, não em choro derramado, mas em baba caída. Os dedos? Coitados! Perderam trilhas e, suspensos numa quietude avassaladora, quedaram-se endurecidos.Nada mais resta ser gritado...nada mais existe, tudo desfeito num espaço infinito, cercado de ventos e vestes queimadas no surruro de Gildes...

Cris Teles disse...

Esse blog requer comentários feitos sob atenção especial, ainda mais agora que soube de sua merecida posição nº 1 num ranking brasileiro sobre filosofia, faz bonito!
Atenção essa que ainda não havia me permitido. Falta de tempo? Talvez excesso de vaidade, afinal dentre as temáticas propostas, não considerei meu discurso suficientemente amadurecido para opinar deveras.
Como o brunimento (palavra mais bonita que lapidação) se dá sob olhares, desavergonho-me e palpito!
Essa relação dialética entre o leve modelo de vida “simplicista” (lê-se algo ou alguém ligado intimamente ao ambiente rural e natural) e a densidade do saber de sentimentos humanos, obviamente em seu sentido subjetivo, permeia, há tempos, a cabeça dos poetas e compositores mais geniais, haja vista Elomar Figueira Mello. Com Gildes Bezerra (cujo me é apresentado através deste post - desculpe minha ignorância e se cometida, equivocada observância), não é diferente. A hibridez dos elementos naturais com os sentimentos humanos, bem como a mistura do divino com sofrimentos mundanos, faz dos seus versos cheiro de terra molhada e céu de lugar inabitado. A forma como os revela, mais interessante ainda: Não gesticula e quase nem se move. Não declama, apenas expõe, como alguém que nada importante diz – quase como aqueles candidatos de primeira viagem em suas exposições na TV durante o interessantíssimo Horário Político (obrigatório), nem tanto. Ele não é intérprete, é puro poeta. Pura beleza. Fico contente em sabê-lo.

Gildes disse...

Duda, querido amigo. As palavras saídas do seu coração navegaram e chegaram ao meu, para provocar momentos de reflexão que não querem mais partir deste meu porto interior. E em novos barcos chegados,outras palavras, que fazem os comentários da Elisa, também minha amiga, e da moça Cris Teles, enriqueceram o meu silêncio. Seguem abraços e obrigados!
Gildes

Anônimo disse...

O teor do meu comentário, se me permite esta prentensão,acompaha a simplicidade do poeta e de suas poesias. Após ler alguns versos de Gildes Bezerra, fiquei triste. Não...não foi pelo que li,foi por ter demorando tanto para fazer isso. Acho que andei apreciando demais os poetas mortos,uns nem tão poetas assim. Eis que Duda me apresenta um vivo,de carne, osso,e com mais palavras do que números na idade. Ignorância minha? Talvez. O importante agora é que não vou morrer sem conhecer a simplicidade, eita palavra bonita, dos versos vivos de um poeta que mora aqui ou ai pertinho...pertinho da gente.

Edilúcia Barros.

Duda Bastos disse...

E a casa se encheu de orgulho, posto que os copos foram todos bebidos...

Simone Cabral disse...
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Anônimo disse...
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Anônimo disse...
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Gilcia Maria disse...

Quanto mais me vejo enredada de intelectuais que como bustos em praças públicas me vigiam, quanto mais em meu entorno passeiam livros acadêmicos que por vez me sufocam, mais desejo ser caipira, cada vez mais, cada vez mais.
Duda o jeito que você falou do pai me confirma a busca de ser cada vez mais cabocla. Um beijo e obrigada pelo carinho.

Anônimo disse...

jtlefliDuda,

você descreve o Gildes de forma magistral. Ele faz da nossa tertúlia um lugar mais bonito.

Parabéns a você.