sábado, 19 de abril de 2008

Ensaio sobre o equívoco (ou Das inúmeras bobagens daquele filósofo)

Esbulho à entrevista[1] de André Comte-Sponville à Revista Época[2]

“ As moscas da Praça Pública (...) A praça pública está cheia de solenes bobos e a multidão vangloria-se dos seus grandes homens; neles saúda os senhores da hora presente (...) Não ergas a mão contra eles. São inúmeros; o teu destino não é tornares-te enxota-moscas.”
“Assim falava Zaratustra” F. Nietzsche

Naquelas horas, em Brasília, para aplacar o tédio, posto que estivesse num banco duro de um pequeno parque, eu contemplava algumas pessoas de idade e outras esquisitas a passear seus cachorros horríveis[3]. Possuía também, minutos depois, meu cachimbo e uma revista Época daquela semana. O frio era ameno e eu fazia hora numa das pequenas praças-jardins de um dos blocos de prédios. Tinha tempo de sobra para ler a Época, embora ela não merecesse.

Deparo-me, assim que começo ler, com assertivas missionárias resolvíveis para a “felicidade”. A empreitada parte desse indivíduo considerado pela revista “um dos mais respeitados filósofos e ensaístas da atualidade”. Não tenho nada a ver com seus méritos, são todos dele. No entanto, minhas tripas reclamam no mesmo instante que leio o entrevistado colocar em seu precípuo exórdio[4] respostas a perguntas, quase menos capazes, pistas e fórmulas para a “felicidade”. Em meandros diz que a felicidade é uma busca filosófica e possível de ser encontrada. Uma afirmação, na minha avaliação, demente. Parece uma conjectura Coelhiana [5]de saberes beirando os acervos místicos dos templários ou feiticeiros. Ou quase isso.

Comte-Sponville, em suas respostas, faz da felicidade uma busca filosófica. Para ele a felicidade se comporta como algo possível a ser encontrado no final de um processo. Ele parece pragmatizar – ou plastificar - um ideal humano. É óbvio que a felicidade converte-se num ideal pois habita no campo das idéias. A felicidade é uma ideologia. Para ele é como se fosse um produto. E é viável seguir uma idéia, ou o conjunto destas, que podem proporcionar a felicidade. Esse filósofo convoca elementos simbólicos que apóiam algumas ideologias mal inscritas em campos de felicidade. São modelos muitas vezes reacionários, capitalísticos que embromam a temporalidade da vida. Potencialidades morais. Tais poderes pregam sensos comuns e atuam em produtos valorativos tais como o modelo de família, imbecis felizes, ateísmo, riquezas, etc. A dificuldade de André está no campo valor daquilo que implica uma construção específica do Ideal de felicidade. O discurso é positivista e pessoal. E existem milhares de seres matriculados nessa forma de vida. Ele, de certo modo, está certo enquanto são em sua maioria, na sociedade, os seres massacrados sob a égide de emoções pré-fabricadas. Adeus a singularidades.

Em uma de suas passagens revela que a esperança é um agravante para se encontrar a felicidade. Como se esta estivesse por aí perambulando, podendo ser descoberta a qualquer instante. Um produto de vitrine para ser adquirido por certa quantia, desde que se possa pagar. O autor ensurdece com seus formulismos de felicidade. Para ele a esperança é um achado de apenas desejar o que não se tem: “porque só esperamos o que não temos”.

Respiro com dificuldade. Esperança não é isso. Não está na dinâmica da posse. O fenômeno da expectativa é um dado desse processo de acordo com uma das principais virtudes do ser: a paciência. Trata-se da natureza expectante do indivíduo absorto numa sociedade de lutas para viver ou sobreviver. O homem expectante aguarda otimismos e vontades que o estimulam a continuar. Mas, continuar a quê? Inicialmente ao aprendizado que nutre esse processo. E não ao propósito enfadonho por resultados, pelo tesouro escondido, pela cura. A felicidade para esse materialista mais parece um produto enlatado escondido atrás de um rótulo. Esperar é uma profunda experiência humana. É um sabor audacioso e em certos casos uma questão fatídica.
Por detrás de seu ateísmo revela símbolos sincréticos que falseiam o amor como algo imbricado na reificação, algo solto no espaço, algo de vínculo apenas orgânico. Faz do amor uma propriedade fisiológica como se pertencesse ao metabolismo do corpo. Comte-Sponville trata ainda a fé como elemento desestruturador psicológico. Quando na verdade as experiências mostram algum contrário . Em outros casos o cárcere dentro de uma religião e a libertação desse torna-se uma experiência que faz do ser um minerador ao centro de suas convicções e o capacita a tornar-se apto a descobertas (partidas e retornos). Ao mínimo uma compensação sensata: o que aconteceria sem a fé? A sociedade talvez mergulhasse na barbárie. Outras vezes, acho, isentos de fé; as ocupações guerrilheiras, seqüestros - relâmpago e balas perdidas; pareceriam brincadeiras infantis. E ainda: o capitalismo tsunami acabando em poucos segundos com iniciativas decanas ou seculares de negócios. E mais a sociedade “viking” compeliria os seres a subjugar pela força. A fé parece equilibrar a equação estabilizadora da sociedade tendenciosamente maniqueísta.

Sou cético em relação ao tecido social sem articulação espiritual. Sem a metafísica a humanidade fica óbvia. Mas falo também ao deslocamento pelo divino em atos e incursões a um ser superior. Ao se pensar na dimensão do seu próprio corpo, os ateus imaginam que o elemento vital parece sustentar-se ou por princípios físicos ou mágicos. Vamos escolher? Outros ateus, descrentes pesados, encontram assertivas menos industriais ou publicitárias, mas é visível que Comte não escreva livros, e sim os fabrique. Tal como o seu “O Pequeno Tratado das Grandes Virtudes “, uma bobologia operante que pretende adestrar pessoas para o bem. A cada minuto surge um novo Cristo, Buda ou Maomé. Nada novo sobre o sol. Este livro é mais perto de uma ditadura mascarada em publicação de cabeceira para pessoas mal-amadas. Mas também qual o problema em ser mal amado? Vamos discutir as culpas e traçar um projeto de conversações sem fundamentos. Leia “Ecce Homo” de Nietzsche. Aliás leia os dois. A postura caudatária de André a Frederic chega a ser imoral frente as cópias e deturpações que faz desta lúcida obra e (de quebra) de tantas outras.

Retire o espírito do homem – talvez até o espírito hegeliano[6] - e ele desmoronará. Coloque essa lei, fundamente os atos que agirão em função de idéias moralistas e crendices morais e convocaremos o terrorismo no corpo, mente e sociedade. Expurgo os clichês com os quais esse filósofo se diverte. Não é problema pensar a felicidade, mas é terrível fazer uma enciclopédia de modelos desta para os outros. Assim como a publicação de auto-ajuda é uma farsa. A televisão é mais edificante, um filme de Holywood até. Melhor seria se ele apagasse suas pegadas. Isso não vai acontecer, pois ele lucra fantasticamente sob a roupa de filósofo. Ele é um homem esperto e feliz.


[1] A entrevista pode ser encontrada em http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDG76063-6014,00-A+CONSOLACAO+DA+FILOSOFIA.html
[2] Revista Época n° 450, janeiro de 2007.
[3] Triste o costume de se criar poodles e cachorros em miniatura que mais parecem ratos. Essas pragas brancas e cardíacas infestaram o planeta transformando-o num verdadeiro mundo-cão. Desculpe o criticismo exagerado. Perco o(a) amigo(a) mas não perco a piada.
[4] Aquilo que antecede ao discurso. Ver o esquema aristotélico do discurso.
[5] Paulo Coelho, criador de contos-de-fadas para adultos infanto-juvenis.
[6] Uma esfera última do pensamento humano. É no espírito que está a sua fonte. Mente, para Hegel, se distingue do espírito. Somente o homem, como ser pensante, é capaz de produzir sentidos de beleza. Na verdade, o espírito direciona-se para a existência individual do homem através de seus devenires. O espírito absoluto é uma das necessidades de entendimento do mundo por intermédio de seus aspectos ou arquétipos gerais, que, entretanto precisam de um encaminhamento para o individual. A arte faz essa mediação de forma sublime. O espírito absoluto adquire vida no nível da generalização: pensamos sempre abstratamente e, no entanto, sentimos individualmente. Trecho adaptado da Idéia e o Ideal, de Estética. Coleção Os Pensadores e do texto de Elba B. R. da publicação Cantoria Nordestina: música e palavra.

3 comentários:

Anônimo disse...

Duda
Você escreve de uma forma inexplicavelmente bela.
Adorei seus textos.

Abraços, Rai.

Rafael Mafra disse...

Vc deixou um recado no meu orkut, como não consegui responder... está ai...

Obrigado... Sim, concordo.... não é por menos que ele é considerado um "materialista" no sentido mais grosso que possa existir... Conquanto que admiro algumas ideias dele, não tudo o que diz...

Abraços também!!!

Unknown disse...

Certa vez, ganhei um livro(aliás, nem sei por onde anda) com o título "Os 100 segredos das pessoas felizes", de David Niven. Confesso que não tive paciência para ler toda essa obra(se é que posso chamá-lo assim...mas admito também que li alguns trechos. "Ao acordar, tome consciência do aconchego da cama onde você descansou e usufrua a maciez dos lençõis. Veja a água descer do chuveiro como um milagre diário e sinta-a escorrer por seu corpo, limpando-o, refrescando-o. Aspire o perfume do café fresco que invade a casa, mastigue vagarosamente o pão quentinho, sentindo seu sabor. Não deixe essas preciosidades passarem despercebidas. Olhe o azul do céu ou alegre-se com a chuva, pensando nas plantas que ela nutre". Nossa...isso parece uma receita de bolo, no entanto, é mais ou menos isso que tem escrito no livro. O pior é que essa receita,de acordo com o autor, é de "felicidade". Então, vamos todos seguir esse roteiro(que nem é ao menos filosófico)e sermos felizes todos os dias. Lindo isso...linda mesmo é a conta bacária do guru em questão ...fiquei sabendo que ele ganhou muito $ com esse livro.Isso quer dizer que tem muita gente que acredita em "fórmulas" de felicidade.Grave, muito grave. Sim, não estou dizendo que "olhar o azul do céu" não significa nada, claro que tem sentido...deixe-me ver... acho que significa olhar pra cima(e só). Falo assim porque sei que se não estivermos bem internamente não veremos nem que o céu é azul. As "bobologias" são inúmeras mesmo.