quinta-feira, 15 de julho de 2010

Vale do Capão. Fulguração excêntrica para uma vida fugidia.



Né maconha não, é Trevo.
refrão da canção entoada em Caeté-Açu - Capão.
Autoria desconhecida.


Acerto o carro para compor o melhor trecho a me salvar dos mondrongos altos e baixos da estrada de terra nos 21 quilômetros percorridos entre Palmeiras e o vilarejo de Caeté Açu, conhecido fabulosamente como Vale do Capão. Nesse traçado me aproximo beirando a estrada a ponto de ver o rio corrente colado no caminho logo próximo às imediações da primeira ponte. O hálito fumaçado já acusa a noite mais fria, diferente de outras em toda Bahia. Nenhuma com esse clima e cheiro perfumado de entre-montanhas da Chapada Diamantina. Nesse solstício de julho em que a temperatura declina até o fim de agosto encenando a melhor previsão do tempo dessas regiões, e, as brotaduras do chão são rugosidades lamacentas por onde anuncio minha chegada, a recompor vitalidades dificilmente conseguidas ao longo do ano nos nefatismos de meu centro-cidade. Os espaços grotescos e frondosos por onde percorro tendo ao lado meu Sancho de aventuras, um cão Boxer, causam demais quantidades de prazer sensível. Ele com a carona fora da janela está a consumir o melhor do vento, eu arrisco o braço afora para manter-me próximo à temperatura ambiente. Após sobe-desces chego a hospedaria que me recebe com uma fina garoa erguendo os sons noturnos e outros cheiros amadeirados, enfolharados e barrescentes. O cão alucina. Eu idem.

Frequento o Vale fixando estadia desde 1998, antes apenas de passagem. Acompanho as mudanças, novidades, histórias, máculas e maravilhas. Chego a considerar este lugar possuidor das energias vitais mais profundas já sentidas por mim. Dessa energia complicada em descrever, na forma confucionista de tudo haver necessariamente uma explicação plausível. Trata-se de outra maneira, outra sensibilidade transcendente, desconhecida e valorizada nos planos religiosos diversos que recheam esse Vale com centros de curas e tratamentos das mais variadas naturezas espirituais ou não. O Capão é um armázem natural de tudo quanto é substância aliciadora a estados de alteração mental e espiritual, desde ervas bem conhecidas chegando aos cogumelos alucinógenos. Além de crenças nas entidades gnomológicas e élficas a única capelinha do vilarejo está fechada, sempre, parece ser decisiva a ocupação por outros deuses a animar os buscadores espirituais de lá. Não é o meu caso. Porém, algo de mágico se ocupa das viagens dos transeuntes instalados ou visitantes do lugar. Existe magia em quase todos alimentos serem livres de química industrial ou agrotóxicos: os vegetais, o pão, as massas e o café, produzidos e consumidos no local. A forma higiênica como procedem os estabelecimentos orientam subjetivamente para os graus de pureza encontrados por onde se toca, anda e respira dentro desse Capão.

Hoje, depois de seis dias em estrelas, alvoradas, rios gelados e breus estou de volta sem nada nas mãos. Não posso trazer a Cachoeira da Purificação, a mata do Pati, as noites do vilarejo, os personagens das vielas, a lama do Bomba, as jaqueiras do Calixto, o Rembrandt em plena noite, as vias de acesso e placas nominativas de cada lugar, as pinturas de Salomão e os chalets de Zéu. As sobras das unhas destinadas ao violão foram despedaçadas e a voz perdeu-se por dois dias após a violada que começou cedo da noite e terminou às cinco e meia da manhã. As nove e meia já estava acordado para recomeçar as pinturas nas vistas e o exercício gastronômico de me esbaldar. Sempre depois de dar uma chegada no vizinho Zéu e palestrarmos sobre os nobres ares da vida debaixo de um café. Soltando o cachorro no mato vejo ser a liberdade esquisita para quem se acostumou a ver e rever seus e-mails constantemente. Atualizar correspondências e devolver ligações por hora perdidas. Desmantelei em seis dias todas essas necessidades e quase vivi como o mesmo da década de oitenta, ou mais antiga. Sem telefone, sem computador, sem cartão de crédito. Simplicidade e liberdade ficam esquisitos quando se está protegido pela inquietude da estabilização. Parece não ser apenas os virginianos a desejarem tudo em seu devido lugar e vejo como as ansiedades postas à mesa são uma péssima digestão no dia-a-dia, em dias comuns da vida capital. Meu ensaio de fugere urbe ficou dissolvido nos meus prós e achados sinceros do desejo de mudar e retornar a outros desejos. Transformar a cabeça, higienizar os consumos e dissolver os objetivos práticos e sistemáticos, saudando em certo tom amoroso a boa vontade com minha natureza carente do verde e do frio, do riso e da liberdade. No Capão só quem cobra é quem vende. As pessoas estão certas ter nos outros a idéia de buscadores, pois não precisam devolver nem acenar, retribuições são todas francas, se acontecem ou não. Lá não se espera, não se alcança. Lá a vida corre como tem que ser, em cada meta surpresa na infinitude de cada campo de alegria surgindo a qualquer momento nas esquinas, nos quaisquer trechos de barro ou mesa onde se come. Os fajutismos quando aparecem lá ficam por conta de um e outro visitante deslocado do ambiente, sem chances pro perverso ou autores das práticas ruins das cidades, são gentilmente convidados a se retirarem do Vale ou antecipadamente descriminados. Aventureiros tem menos chances ainda pois o Capão devolve ou despeja as forças estranhas realizadoras da invasão. Aquele campo, enquanto durar o projeto, está livre e certificado como um dos mais transcendentes e importantes lugares da terra. Ouvi de alguns viajantes do mundo inteiro sobre a força do Vale: nem a Índia possui a vibração viva e instalada entre os rochedos. Particularmente o lugar mais bonito já visto por mim foram as montanhas e formações naturais das middle lands escocesas mas não chegam à altura da vibração do Vale.

O Capão conserva tipos curiosos para olhares desavisados. Rapidamente podem ser confundidos com personagens amparados por diversos rostos estéticos presentes no imaginário comum. A proeminência da cultura zen com a dos moldes rastafaris mesclam aspectos figurados da cabeça aos pés revelando seres típicos-a-típicos. Alguém já soprou nos meus ouvidos sobre esses transeuntes capônicos serem uma espécie de rastafari indiano. É provável certamente existir algum portal sublimado em outro plano entre esses dois lugares; Índia e Capão. A presença das duas culturas é muito naquele lugar. Acredito ser a marcação identitária de adereços, figurinos, jeitos nos corpos a primeira posse territorial realmente autêntica para aqueles seres, e, ainda conformados num grupo é praticamente impossível exercer qualquer vidência no âmbito do interior de cada criatura assumida naquelas plenitudes estéticas. Da abnegação de todo projeto material de vida aos pés sujos arrastados nas sandalinhas eles vão vivendo e seguindo a troco de pão no cotidiano bravio do Vale. Alguns despejaram suas reservas acumuladas numa vida dramática nas cidades-centros, de repente cansaram e ergueram no Vale sua tapera, podendo assim recomeçar a vida e outros tão jovens escolhem a vida leve e livre a troco de bens-estares e verdades ideológicas. Talvez seja corajoso ou talvez fugidio. Talvez nômades em troco de ares e outra possibilidade de vida. Alguns descobriram poder ganhar algum dinheiro sendo daquele jeito. Outros apenas se precisam fora das massas e se uniram às suas multidões, no derivativo do Uno, perseguindo, na palavra socrática, o seu apeiron, o Ilimitado, ou tal como Marx seu intelecto geral. para Peter Pál Pelbart a potência ontológica comum. Precisamente são raros aqueles exploradores e aventureiros dessa cidade interior. Os zen-rastas-índios do Capão fogem do mundo não porque são covardes ou sofridos, mas porque são nômades. Essa multidão se gosta no contexto de expandir em pobrezas, algumas restrições construindo seu agregado indomável em uma microafetividade pertencente apenas a eles e mais nenhuma outra forma social de existir. É complexo a dimensão nomadista de quem está apenas no transir buscando alguns desprendimentos a respeito das formas de poder sobre a vida para dar lugar a potências para a vida. Eles são os reterritorializados, aqueles que fogem e fazem tudo fugir. Sua própria desterritorialização é um território outro, subjetivo. Entenderam de vez ser a nós vendido o tempo inteiro maneiras de ver e sentir, de pensar e de perceber, de morar e de vestir, e acrescentaria ainda os maneirismos vendilhões de amar e renunciar, num processo contínuo de consumo de, mais que bens, formas de vida. Eles não consomem aquela subjetividade, a vivem como tal. É uma fé, uma crença, sem moedas, sem aparências, sem vitrines. Ao menos se colocaram no caminho de não possuir, de não sobreviver aos ideais enfadonhos e extremamente infelizes de uma vida ordinária, alarmada em inseguranças, angústias e autoflagelações. É importante coexistir naquele ambiente onde alguns mergulhos gelados e manhãs despertas em paz dão sentido a outra forma de existir na dimensão fugidia do julgo dos dias, das cenas enfadonhas e óbvias das ruas comuns da cidade onde vivo. E ainda mais importante pelas pessoas inseridas naquele contexto sabedoras de outras incertezas e tão realmente vivas.

Quando cheguei e girei as chaves de casa vi que dessa foi a mais difícl de ter saído de lá.

2 comentários:

Diego disse...

Vale do Capão - o melhor Lugar do Mundo!! :)

Lua disse...

Antes de sair do Capão ainda não estava suficientemente convencida de que minha vida havia mudado após a visita ao Vale, apenas quando cheguei na cidade de Lençóis percebi que a liberdade vivenciada no Vale do Capão não existe em nenhum outro lugar do mundo, pois não é apenas a liberdade física, é da alma, é do espírito é do SER HUMANO! Realmente, o Capão é o melhor lugar do mundo!!!!