quarta-feira, 25 de novembro de 2009

As canções do Sertão Profundo de Elomar Figueira Mello



O senhor tolere, isto é o sertão.
Guimarães Rosa

Próximo ao átrio receptivo da Casa dos Carneiros pelo qual se chega através de uma rampa, está a Sala Dos 7 Candeeiros. Hoje, um pequeno teatro para 200 convivas que se abre em meio a um local naufragado no espaço e tempo, deslocado dos circuitos culturais de qualquer centro urbano. Essa casa dos Carneiros fica num povoado chamado Gameleira, localizado a 19 km de Vitória da Conquista. Um ambiente roçaliano, seco, áspero nessa quadra de outubro. Uma locanda envolta em pó e fumaça de lenha. Bonitos, os candeeiros dispostos nas paredes - seis dentro e um fora - completam a mística daquela canção: “Lá na Casa dos Carneiros, sete candeeiros iluminam a sala de amor. Sete violas em clamores, sete cantadores, são sete tiranas de amor, para amiga em flor que partiu e até hoje não voltou (1)”. Para quem conhece e chega, abre-se um portal atávico, de estesias. Para quem não o sabe, não existe catarse.

O anfitrião, já fora das horas mortas (2), degusta café e pão. Sinal de que cheguei atrasado. Em seguida não demora a contação de histórias começar e notícias de outras sendas são permitidas numa troca aprazível de saberes e novidades. Fico impressionado com o cuidado e amor na construção do teatro. No sonho do Bode, como o trato carinhosamente, ele acorda espetáculo. Embora rejeite a exploração de sua imagem, se permite a câmara cênica para performances. Vou e volto em circunstâncias e a imagem que me toma é cheia de reverberação nas histórias do cancioneiro Elomariano. Aquela acústica teatral cria e dispersa sonidos, e, logo testo o ambiente, a pedido do próprio Elomar. Arrisco uns versos de uma canção. Ele fica paloso em reconhecimento ao seu grandioso artefato, ao templo da cantoria que torreou, e se gaba por mim.

Perto dali, longe de qualquer razão mercadológica, Elomar refugia-se para distante dos olhares e companhias desnecessárias. Sua economia parece muitas vezes, segundo Jerusa Pires Ferreira, ser uma vingança ao próprio corpo. Talvez. Todo artista traz sua parcela de vaidade e os anos são como lâminas a lhes cortar. Ferido, fica-se exposto nas rugas difíceis. Mas encontro nesse fato do meso-exílio do cantador, uma presença cavalheiresca que precisa ser visitada. E eu preciso visitá-lo.

Ouvir Elomar é sentir algo afogado na ninguendade (3). Não é música brasileira. A MPB ou variações dos títulos para a música brasileira, para o texto brasileiro, não encontra enunciados na sua musicalidade e poética. Não me parece de lugar algum. A não ser por um aspecto: pertencer ao território geográfico do país ou de alguns naufrágios da memória. Elomar não tem a cara do nacional, de baluarte da pátria ou coisa parecida. Nem tão pouco o estandarte da música regional. Mesmo porque o regional, visitando Bourdier (4), é um terreno perigoso, que traz mais ficção que identidade. Aliás, que identidade?

Mas o que é então?...É sertão profundo.

Uma concórdia para além dos costumes, cultura rural ou saberes lingüísticos. Panacéia de memórias esparsas no tempo e lugar. O sertão profundo é mundo filosófico, outro fulgurado por um sol diferente. É a impossibilidade metafísica do desprendimento, são altitudes poéticas e musicais que se abrem em resultantes. As obras de Elomar não são resultados de alguma cultura específica, mas produções de algo que vem de longe, de outras quadras, de outra física e atravessa o corpo inteiro do artista. Algo que não vem da paisagem, na idéia de Merleau Ponty (5), mas a ela se mistura e completa. A conjuntura do habitat traz a cultura rural para Elomar, este se reveste do sertanês e a produção artística passeia pelas palavras e linguagens dialetais. Recebe as doses de nordestinidade. Apenas acidente no percurso.

O idioma sertanês – em suas múltiplas variações do português - apresenta-se como elã na construção do inteligível, na afirmação de labirintos dos versos: “(...) i antes ofreceu o mote, pro saco do saqué, e o cassote c´u pote deixo o quati só cu´a fé de qui dent´o do tal pote inda tinha algum café (...) (6)”. Tudo isso para não ser descoberto facilmente, pra ficar ali escondido, vendo o romper gota a gota, da arte profética, sertaneza, escatológica e bela.

Para poucos, bem poucos.

Distante das esquizofrenias capitalísticas – nem por isso alheio ao metal. Não cede, não empresta, nem vibra com urbanóides (7). Tem alma boêmia e se refaz em alegria contando histórias que lembram mais o Pantaleão de Chico Anísio que as invenções de vaqueiros e comadres da caatinga. Não entende a indústria da cultura artística e não faz pacto com os lobos. Mas se apresenta telúrico, capitão, príncipe, vaqueiro na roupagem de música lúgubre e por demais épica, ofertando generosamente o seu imaginário e causos com ciganos, de tropeiros.

Ergo todas essas idéias com uma xícara de café forte e ele me acompanha. As horas arrematam o tempo, que passa lamentavelmente. Mas no cair da noite, lá na Casa dos Carneiros, vejo os sete candeeiros iluminarem a sala de amor. Violas em punho, partituras alcançadas e a furria espreita por onde latumias de cantos arpejam a alma.


Notas
1.Cantiga de Amigo. Letra e música de Elomar Figueira Mello. Presente no CD Das barrancas do Rio Gavião. Direção de Produção: Roberto Santana. Apresentação de Vinícius de Moraes. [S.l.]: Philips, 1973. 1 CD. Distribuído pela Polygram.
2.As horas da morte de Jesus Cristo, entre 15h00 e 17h00 da tarde.
3.RIBEIRO, Darcy. O Povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil.
São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
4.BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.
5.PONTY, Maurice Merleau-. Fenomenologia da Percepção. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
6.Desafio, presente no CD : MELLO, Elomar;MARQUES, Dércio; XANGAI, Eugênio Avelino. Auto da Catingueira. Manaus: Sonopress 1984a. 2 CDs. Editora e Gravadora Rio Gavião.
7.Urbanóides são, de acordo com Elomar, os cidadãos que vivem na Urbis
e discriminam as culturas campestres.

Imagem de abertura: candeeiro da Sala Teatro da Casa dos Carneiros - Foto: Duda Bastos

2 comentários:

Guilherme F. de Gusmão disse...

Escuto os clamores das violas, trespassando os portais e adentrando minh'alma, sinto o calor dos candeeiros, meu corpo transborda de amor e a cena apresenta-se diante de mim, como um sonho...

Anônimo disse...

Boa noite!
Através da comundade de Elomar, li o q vc escreveu.................ficou tão bonito moço.
Me lembrei quando eu era mais jovem e imaginava a Casa dos Carneiros, os sete candeeiros, etc.
Depois de ler o q vc escreveu, e o jeito poético como escreveu, penso: quem sabe, um dia ainda conheço a Casa dos Carneiros.
Grata por ter despertado tão bons sentimentos e lembranças através do seu escrito.

Êxito em suas criações.
Ângela Felipe.