As canções do Sertão Profundo de Elomar Figueira Mello.
Apresentação para o Curso de Letras da UNIME – Lauro de Freitas, 30 de outubro de 2007.
Apresentação para o Curso de Letras da UNIME – Lauro de Freitas, 30 de outubro de 2007.
Próximo ao átrio receptivo da Casa dos Carneiros, pelo qual se chega através de uma rampa, está a Sala Dos 7 Candeeiros. Hoje, um pequeno teatro para 200 convivas que se abre em meio a um local “perdido”, deslocado dos circuitos culturais de qualquer centro urbano. A Casa dos Carneiros fica num povoado chamado Gameleira, localizado a 19 km de Conquista. Um ambiente roçaliano, seco, áspero nessa quadra de outubro. Uma locanda envolta em pó e fumaça de lenha. Bonitos, os candeeiros dispostos nas paredes - seis dentro e um fora - completam a mística daquela canção: “Lá na Casa dos Carneiros, sete candeeiros iluminam a sala de amor. Sete violas em clamores, sete cantadores, são sete tiranas de amor, para amiga em flor que partiu e até hoje não voltou[1]”. Para quem conhece e chega, abre-se um portal atávico. Pirimpilhação de estesias. Para quem não o sabe, não existe catarse. O anfitrião, já fora das horas mortas[2], degusta café e pão. Sinal de que cheguei atrasado. Em seguida não demora a contação de histórias começar, e notícias de outras sendas são permitidas numa troca aprazível de saberes e novidades. Fico impressionado com o cuidado e amor na construção do teatro. No sonho do Bode, como o chamo carinhosamente, ele acorda espetáculo. Embora rejeite a exploração de sua imagem, se permite a câmara cênica para performances. Vou e volto em circunstâncias e a imagem que me toma é cheia de reverberação, nas histórias do cancioneiro Elomariano. Aquela acústica teatral cria e dispersa sonidos, e, logo testo o ambiente, a pedido do próprio Elomar. Ele fica paloso em reconhecimento ao seu grandioso artefato, ao templo da cantoria que torreou.
Perto dali, longe de qualquer razão mercadológica, Elomar refugia-se para distante dos olhares e companhias desnecessárias. Sua economia parece muitas vezes, segundo Jerusa Pires Ferreira, ser uma vingança ao próprio corpo. Talvez. Todo artista traz sua parcela de vaidade e os anos são como lâminas a lhes cortar. Ferido, fica-se exposto nas rugas difíceis. Mas encontro nesse fato do meso-exílio desse cantador, a presença cavalheiresca que precisa ser visitada. E eu preciso visitá-lo.
Ouvir Elomar é sentir algo afogado na ninguendade[3]. Não é música brasileira. É dramático e impossível de territorialidade. Ele inteira um país. Como o Vaticano dentro da Itália. A MPB ou variações dos títulos para a música brasileira, de acordo com o texto academicamente instituído como brasileiro, não encontra enunciados na sua musicalidade e poética. Não me parece de lugar algum. Elomar não tem a cara do “nacional”, de baluarte da pátria ou coisa parecida. Nem tão pouco o estandarte da música regional. Mesmo porque o regional, visitando Bourdier[4], é um terreno perigoso, que traz mais ficção que visibilidade. Aliás, que visível? E esse negócio de cultura regional, música de raiz nem existe (como sempre, isso é outro assunto). Mas o que é então?
É sertão profundo.
Uma concórdia para além dos costumes, cultura rural ou saberes lingüísticos. Panacéia de memórias esparsas no tempo e lugar. O sertão profundo é mundo filosófico, outro fulgurado por um sol diferente. É a impossibilidade metafísica do desprendimento, são altitudes poéticas e musicais que se abrem em resultantes. As obras de Elomar não são resultados de alguma cultura específica, mas de algo que vem de longe, de outras quadras, de outra física e atravessa o corpo inteiro do artista. Algo que não vem da paisagem, na idéia de Merleau Ponty[5], mas a ela se mistura e completa. A constelação do habitat traz a cultura rural para Elomar, este se reveste do sertânico e a produção artística passeia pelas palavras e linguagens dialetais. Recebe as doses de nordestinidade.
Tudo acidente de percurso.
O idioma sertanês – em suas múltiplas variações do português - apresenta-se como elã na construção do inteligível, na afirmação de labirintos dos versos: “(...) i antes ofreceu o mote, pro saco do saqué, e o cassote c´u pote deixo o quati só cu´a fé de qui dent´o do tal pote inda tinha algum café (...)[6]”. Tudo isso para não ser descoberto facilmente, pra ficar ali escondidinho, vendo o romper gota a gota, da arte profética, sertaneza, escatológica e bela. Para poucos, bem poucos. Distante das esquizofrenias capitalísticas – nem por isso alheio ao metal. Não cede, não empresta, nem vibra com “urbanóides[7]”. Tem alma boêmia e se refaz em alegria contando histórias que lembram mais o Pantaleão de Chico Anísio que as invenções de vaqueiros e comadres da caatinga. Não entende a indústria da cultura artística e não faz pacto com os lobos. Mas se apresenta telúrico, capitão, príncipe, vaqueiro na roupagem de música lúgubre e por demais épica, ofertando generosamente o seu imaginário e causos com ciganos. Ergo todas essas idéias com uma xícara de café forte. As horas arrematam o tempo, que passa lamentavelmente. Mas no cair da noite, lá na Casa dos Carneiros, sete candeeiros iluminam a sala de amor.
[1] Cantiga de Amigo. Letra e música de Elomar Figueira Mello. Presente no CD Das barrancas do Rio Gavião. Direção de Produção: Roberto Santana. Apresentação de Vinícius de Moraes. [S.l.]: Philips, 1973. 1 CD. Distribuído pela Polygram.
[2] As horas da morte de Jesus Cristo, entre 15h00 e 17h00 da tarde.
[3] RIBEIRO, Darcy. O Povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil.
São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
[4] BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.
[5] PONTY, Maurice Merleau-. Fenomenologia da Percepção. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
[6] Desafio, presente no CD : MELLO, Elomar;MARQUES, Dércio; XANGAI, Eugênio Avelino. Auto da Catingueira. Manaus: Sonopress 1984a. 2 CDs. Editora e Gravadora Rio Gavião.
[7] Urbanóides são, de acordo com Elomar, os cidadãos que vivem na Urbis
e discriminam as culturas campestres.