domingo, 22 de maio de 2011

STARRY, STARRY NIGHT



Como eles conseguiram? Onde está o veio que capacita os grandes artistas e suas grandes obras, aquele expressivo para uma forma tão única revelada enfim como genialidade? Qual é este manancial? Ele existe?




"(...) Todas as coisas nos foram dadas para serem transformadas: temos de fazer com que as circunstâncias miseráveis de nossa vida se tornem coisas eternas ou em vias de eternidade. (...) O artista se conhece diante de um espelho construído por ele mesmo. Rasurar a possível concretização de seu grande projeto é, assim, rasurar a si mesmo."
Do fragmento do texto de Cecília Almeida Salles em Gesto Inacabado

Então são montagens através de espelhos de si mesmo? Mas, como construíram seus diversos espelhos para se orientar? Ora, me parece ser este espelho o portal de revisão, de reconhecimento, de olhar para dentro através de um fora, de uma imagem outra de si mesmo e das coisas, que por sua vez parecem esclarecer pontos de existência. E, certamente, existe um movimento constante que vai e volta em direção ao ego profundo, freudianamente tido como o núcleo da personalidade. Artistas, que, em sua grande porção, trazem personalidades perturbadoras e inquietantes para o senso comum. E, como sabemos, estão envoltos em complexidades tão profundas nos vários sentidos da existência, e pouco depois acabaram condicionados da loucura à doença. Por uma série de vezes retirados do ambiente social comum e conduzidos à internação clínica. De loucos à doentes, como alarmou Foucault.

Para Cecília Salles, esse espelho do trágico parece funcionar como dínamo criativo no ato de compor a obra, e o artista talvez seja aquele a construir sua própria cena colaborativa com as "circunstâncias miseráveis" à sua disposição, inscritas em si mesmos. É processo do vir de dentro, de uma preparação de um modo de sensibilidade, de um sentido profundo e catártico da via onde se espelha os ideais artísticos e sensíveis aventurados. É ato de exposição e integração ao campo gerador da verve, do interesse e do poético, tal como Grotkowsky em suas catarses de campo, ou melhor, de floresta. Talvez até, em oposição ao trágico e aos vigorosos momentos de dor proeminentes na vida, no qual todos somos vítimas ou sobreviventes, entre seres "normais" e "artistas", será preciso entender a circunstância normalista de uma crise, onde a problemática só é uma desarmonia para o pensamento positivista, arfante pela grande cura. Onde é o lugar mais frondoso do caos senão dentro do próprio artista, onde habitam os barulhos e frêmitos que podem dar, segundo Nietzsche, luz à uma estrela dançante?

Starry Starry Night de Don Mc Lean, inspirada na vida e obra de Vincent Van Gogh, é capaz de mostrar uma face do desacordo, a princípio, no reflexo contido num espelho muito difícil entre a circunstância do artista e o mundo em que vive.

Starry, starry night.
Paint your palette blue and grey,
Look out on a summer's day,
With eyes that know the darkness in my soul.
Shadows on the hills,
Sketch the trees and the daffodils,
Catch the breeze and the winter chills,
In colors on the snowy linen land.
Now I understand what you tried to say to me,
How you suffered for your sanity,
How you tried to set them free.
They would not listen, they did not know how.
Perhaps they'll listen now.
Starry, starry night.


Alguma transformação deve ser feita a partir de certos conhecimentos, mas certamente nada se compara à dádiva natural imbricada na feitura singular de cada artista e em sua mais sublime potência. Nada há de ser comparado ao talento natural para a captura da experiência sensível que já vem, desde as estrelas, inscrito no próprio artista. O resto ressoa como fraude ou beleza fraudulenta. A fraude que habita os campos diversos do mundo normalista e o revela, por fim, como um mundo ignorante, legalista e auto-suficiente distorcido em variáveis concêntricas, desejantes de equivalência. Um mundo, como retrata a canção, feio demais para existências tão bonitas.

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

A CASA DOS AEDOS


"Nessas condições, se nos perguntassem qual o benefício mais precioso da casa, diríamos: a casa abriga o devaneio, a casa protege o sonhador, a casa permite sonhar em paz. Só os pensamentos e as experiências sancionam os valores humanos. Ao devaneio pertencem valores que marcam o homem em sua profundidade. O devaneio tem mesmo um privilégio de autovalorização. Ele usufrui diretamente de seu ser. Então, os lugares onde se viveu o devaneio reconstituem-se por si mesmos num novo devaneio. É exatamente porque as lembranças das antigas moradas são revividas como devaneios que as moradas do passado são imperecíveis dentro de nós."

"Toda pessoa deveria então falar de suas estradas, de suas encruzilhadas, de seus bancos. Toda pessoa deveria fazer o cadastro de seus campos perdidos."

Fragmentos de A Terra e os Devaneios do Repouso de Gaston Bachelard


O primeiro álbum de Dércio Marques, poeta-cantador desterritorializado mas de origem mineira, data de 1977 e chama-se "Terra, Vento e Caminho". Esta obra tem o canto profundo de um homem por reivindicar a sua angústia e beleza por existir num mundo frágil, tão frágil quanto à própria existência do cantador. O LP nasceu após uma grande incursão pela América Latina e o interior brejeiro de um Brasil também profundo, perdido, mitigado em poesias nas grotas e casebres do interior mineiro e baiano, num tempo em que as músicas mass-medias não tinham ainda ganho o espaço e as tradições orais fluíam nos cânticos nativistas. Dércio carregava sua casa bachelardiana nas costas. Morava no percurso, até que um dia resolveu erguer uma antiga torre: a sua obra gravada. Uma casa-torre na qual se enfiou para dizer talvez ser esta a única forma de morar. O espaço para conquistar o seu aval, dentro do sentido de sua existência.



Até onde posso conceber, o poeta-cantador se constrói a partir de um movimento estético atávico, ou seja um passado memorial. Esse tempo está incutido no próprio percurso do conhecimento musical e instrumental presente, na ancestralidade, na natureza dessa arte. Ali está uma casa. Eles são rastros de um caminho antigo ou de uma torre igualmente antiga, de uma prática performativa inscrita na história do ideal de se cantar, de soltar a voz amando com as palavras cantadas. Eles vivem em seus caminhos e estes, por sua vez, todos lhes percorrem. Eles os traçam, eles lhes abraçam. A casa é um movimento, de todos, dos seus pares, é um caminho. A casa é um lugar de confirmação onírica de uma presença que é puro descanso, conforto e restauração. Sair e voltar a ela é uma trajeto vital para o que virá em seguida. O aedo - poeta-cantador - tem na possibilidade de suas canções um ritornelo salutar como estar sempre de volta à sua casa. É muito íntimo para o aedo entregar as chaves de sua casa, abrir suas janelas e receber suas visitas. Toda evocação íntima, entretanto, requer um fator igualmente onírico de aproximação, o sonho é seu elevo de bem estar, de atração do outro. A boa ouvidoria do outro é uma cobertura protetora face à doçura e o trabalho de se ofertar as canções cantadas. Elas, as canções, quando vêem, aparecem testemunhando um grande passado de múltiplas inteligências e talentos artísticos comungados no presente mas imensamente gravadas no recôndito de um modo sensível de expressão, imperceptível muitas vezes para quem ouve mas onipresente para este aedo. A casa do aedo é um lugar proeminente de solidão e presença, terra e ar, repouso e cansaço, brisuridade, um ponto de recordação trazida sempre ao entoar das canções. Falo dessa casa também a qual pertenço e onde levo alforjes que guardam os meus sonhos da infância feito canções, na casa que descobri habitar após vagar muito em campos vazios. A casa que se confirma no meu vasto interior de onde nenhuma presença pode se permitir ficar ou sair sem antes ouvir o canto de chegada. Ou como bem expõe Bachelard citando Pierre Albert-Birot: À porta quem virá bater? Em uma porta aberta se entra. Uma porta fechada um antro. O mundo bate do outro lado de minha porta, e ainda Jean Wahl: O ondulado das sebes, é em mim que o tenho. Dércio começara cuidadosamente em 1977 seu devaneio, ele soubera onde é a sua casa, onde resolvera morar, soubera o seu abrigo onde era permitido se recolher e expandir: sua terra, seu vento e seu caminho.