segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

A CASA DOS AEDOS


"Nessas condições, se nos perguntassem qual o benefício mais precioso da casa, diríamos: a casa abriga o devaneio, a casa protege o sonhador, a casa permite sonhar em paz. Só os pensamentos e as experiências sancionam os valores humanos. Ao devaneio pertencem valores que marcam o homem em sua profundidade. O devaneio tem mesmo um privilégio de autovalorização. Ele usufrui diretamente de seu ser. Então, os lugares onde se viveu o devaneio reconstituem-se por si mesmos num novo devaneio. É exatamente porque as lembranças das antigas moradas são revividas como devaneios que as moradas do passado são imperecíveis dentro de nós."

"Toda pessoa deveria então falar de suas estradas, de suas encruzilhadas, de seus bancos. Toda pessoa deveria fazer o cadastro de seus campos perdidos."

Fragmentos de A Terra e os Devaneios do Repouso de Gaston Bachelard


O primeiro álbum de Dércio Marques, poeta-cantador desterritorializado mas de origem mineira, data de 1977 e chama-se "Terra, Vento e Caminho". Esta obra tem o canto profundo de um homem por reivindicar a sua angústia e beleza por existir num mundo frágil, tão frágil quanto à própria existência do cantador. O LP nasceu após uma grande incursão pela América Latina e o interior brejeiro de um Brasil também profundo, perdido, mitigado em poesias nas grotas e casebres do interior mineiro e baiano, num tempo em que as músicas mass-medias não tinham ainda ganho o espaço e as tradições orais fluíam nos cânticos nativistas. Dércio carregava sua casa bachelardiana nas costas. Morava no percurso, até que um dia resolveu erguer uma antiga torre: a sua obra gravada. Uma casa-torre na qual se enfiou para dizer talvez ser esta a única forma de morar. O espaço para conquistar o seu aval, dentro do sentido de sua existência.



Até onde posso conceber, o poeta-cantador se constrói a partir de um movimento estético atávico, ou seja um passado memorial. Esse tempo está incutido no próprio percurso do conhecimento musical e instrumental presente, na ancestralidade, na natureza dessa arte. Ali está uma casa. Eles são rastros de um caminho antigo ou de uma torre igualmente antiga, de uma prática performativa inscrita na história do ideal de se cantar, de soltar a voz amando com as palavras cantadas. Eles vivem em seus caminhos e estes, por sua vez, todos lhes percorrem. Eles os traçam, eles lhes abraçam. A casa é um movimento, de todos, dos seus pares, é um caminho. A casa é um lugar de confirmação onírica de uma presença que é puro descanso, conforto e restauração. Sair e voltar a ela é uma trajeto vital para o que virá em seguida. O aedo - poeta-cantador - tem na possibilidade de suas canções um ritornelo salutar como estar sempre de volta à sua casa. É muito íntimo para o aedo entregar as chaves de sua casa, abrir suas janelas e receber suas visitas. Toda evocação íntima, entretanto, requer um fator igualmente onírico de aproximação, o sonho é seu elevo de bem estar, de atração do outro. A boa ouvidoria do outro é uma cobertura protetora face à doçura e o trabalho de se ofertar as canções cantadas. Elas, as canções, quando vêem, aparecem testemunhando um grande passado de múltiplas inteligências e talentos artísticos comungados no presente mas imensamente gravadas no recôndito de um modo sensível de expressão, imperceptível muitas vezes para quem ouve mas onipresente para este aedo. A casa do aedo é um lugar proeminente de solidão e presença, terra e ar, repouso e cansaço, brisuridade, um ponto de recordação trazida sempre ao entoar das canções. Falo dessa casa também a qual pertenço e onde levo alforjes que guardam os meus sonhos da infância feito canções, na casa que descobri habitar após vagar muito em campos vazios. A casa que se confirma no meu vasto interior de onde nenhuma presença pode se permitir ficar ou sair sem antes ouvir o canto de chegada. Ou como bem expõe Bachelard citando Pierre Albert-Birot: À porta quem virá bater? Em uma porta aberta se entra. Uma porta fechada um antro. O mundo bate do outro lado de minha porta, e ainda Jean Wahl: O ondulado das sebes, é em mim que o tenho. Dércio começara cuidadosamente em 1977 seu devaneio, ele soubera onde é a sua casa, onde resolvera morar, soubera o seu abrigo onde era permitido se recolher e expandir: sua terra, seu vento e seu caminho.