sexta-feira, 30 de maio de 2008

Fake Show


Texto publicado em 2005 - e agora revisado - no portal xiscando.com direcionado ao corpo discente de alunos de comunicação. O Xiscando é um blog que reflete sobre o mundo da propaganda e mostra o que acontece de mais atual no ambiente do marketing e da publicidade.


A propaganda divertida dos estudantes não vai dar muito resultado. Um número bastante razoável de estudantes ingressa – de modo fácil – numa faculdade com o propósito único: curtir a vida desesperadamente. O mesmo desespero os toma por completo diante do fato de egressar num mercado restrito, mal remunerado e exigente. Vamos ao ponto? Pois bem, há certo tempo atrás, a propaganda criativa pertencia a uns poucos malucos de hábitos noturnos, irreverentes e desachados na vida. Arquitetos, artistas plásticos, jornalistas e até alguns economistas se inscreveram na arte de publicar o negócio dos outros. E o faziam, naquela época, a peso de dólar. Tempos áureos? Não. A propaganda nunca movimentou tanto dinheiro quanto agora. Mas ao passo que a propaganda cresce os salários e remunerações dos valores dos serviços diminuem. Isso não é uma progressão aritmética ou geométrica, é, de fato, uma depressão geo-arit-mega-hiper-eça-métrica. A propaganda regionalizada nos pequenos centros amarga resultado ainda pior: muitos cursos, poucas agências, veículos caros e menos ainda coesão operária. Êta povinho desunido esses aventureiros publicitários. Para se ter uma idéia, nossa classe, aqui na Bahia, é vinculada a um sindicato que pertence aos radialistas. Nada contra os amigos radialistas, ótimas pessoas, excelente profissão. Mas é que uma coisa é uma coisa e outra...
Eu fico admirado com as falas de alguns alunos iniciantes nas searas propagandistas. Eu espremo, espremo, espremo e, no geral, apenas percebo um grande interesse: nota das avaliações e prazo de entrega dos trabalhos. Isso piorou bastante depois que o universo clueless entrou para a propaganda. Os corredores das faculdades não pertencem mais aos bichos-grilo de butique, roqueiros, neo-filósofos, artistas plásticos, militantes políticos, articuladores e inventivos. Pertencem atualmente, em grande parte, à galera do batom, da cópia, dos ambulantes, dos baladeiros, dos sex-appeals que ficam desfilando seus corpos esculpidos de deuses e deusas gregos. Tem aqueles que também são viciados em novas tecnologias e só vivem pra isso, afinal pra que serve tanto recurso no celular senão para que eu ocupe meu tempo. Vejo muita gente com tempo para 2, 3, 4 horas de malhação. Tri-atletas! Ops, será que estão na atividade certa? Vejo estudantes virando noite em baladas, e, nenhuma noite virada confabulando aquela campanha que foi passada como job lá no estágio. Já chegam, geralmente, nos estágios com cara de travesseiro, da mesma forma na faculdade. Péssimo. Esses “especialistas” acham ruim o fax. Mas será que sabem fazer algo melhor?
Outro dia um conhecido meu saiu da Propeg, estava lá há seis anos. Trabalhava como Diretor de Arte. Até hoje não entende por que o salário dele não aumentou neste período e também porque o tinham dispensado. Perguntei-lhe: “Zé, você sabe o que é ars nova? Sabe quem foi Jean Michel-Basquiat?”. Obviamente o nome dele não é Zé, e muito menos sabia o que significava esta modalidade artística surgida com o Renascimento e esse ícone dionisíaco da Pop Art. Como disse Bruno Tolentino: estamos cheios de inteleco-teco-teleco-tectuais. Sabem a execução de uma quebradeira, mas nenhuma que impressione o chefe, o diretor, o professor. Minhas críticas não são às pessoas, mas ao desleixo e à indiferença. A atividade quase vegetativa em relação à profissão escolhida.
Desde minha época de estudante percebo uma coisa: quem manda bem na faculdade, continua mandando fora dela. Outros assumiram a moda dos cruzeiros e estão a ver navios. Talvez porque ficaram com medo da água e não aprenderam a nadar. Metáforas à parte, ainda dá tempo de não perder o ritmo. Dizer que a propaganda é ruim ou mente é algo tão fácil quanto não trabalhar por realizar a diferença. Ela tem suas perturbações: exige sacadas rápidas, inteligência, bagagem e conhecimento, é aglutinadora, incita, comove, influencia. Mas é uma atividade como poucas que proporciona certas estesias – se não sabe o que significa “estesia” um Houaiss cabe bem agora. Agora, se não sabe o que é um Houaiss, me perdoe, mas desista de ler agora esse texto e vá bater um baba.
E são algumas das relações promovidas pela propaganda que ajudam a fazer o cotidiano das pessoas um lugar mais divertido pra se viver, embora ela traga a sua mentira e mascare a realidade a custa de ideais muito duros. Afinal, tem coisa pior do que desejar algo e não poder ter? Mas, onde está o lugar ao sol para aqueles que ralam, e ralam muito? Pode tardar mas não falha, há sempre um véu de oportunidade a ser descortinado quando menos se espera – mas este lugar existe apenas para aqueles que tem algo a dizer e a fazer. E nesse estradar vale a pena alimentar o ego e a cabeça. O primeiro para que você acredite em si, o segundo para que você mostre o porquê de se acreditar. Lembre-se que um trabalho braçal faz um estivador e não um formador de opinião. Portanto pare de ficar levando e trazendo recado no estágio, na faculdade, no trabalho. Procure agir, faça de verdade, pense, reflita, leia, não devore apenas o cotidiano do Uol e do Orkut, revire também o mundo dos impressos. Pode ser um outro universo para você, mas existe vida lá. No mais saiba se colocar porque o show deve continuar, e tão melhor ele será se for feito de verdade. Sem farsas.

quinta-feira, 22 de maio de 2008

Mil sertões em Juraci Dórea


Minha terra não é moça,
Não veste vestido de renda,
Não tem argola na orelha.
Minha terra é menino,
É um vaqueirinho
Vestido de couro.

Eurico Alves – 1928

Em casa de Juraci viramos terracota. Uma parcimônia para virginianos. Nossos gestos ficam elegantes e logo parecemos recém-saídos de gravuras, iluminados de ações delicadas. Fluem entre as cenas do seu atelier cobrinhas-lagartos, peixes e musas fugidias. Outras peças mostram vaqueiros, cantadores, lembranças de cordéis. Na mesa vinho bom, queijos e pães fartos sem, contudo, fazer-nos esquecidos do maravilhoso salmão e bacalhau postos, logo depois, no mar daquela mesa. A prenda é da mulher: a Selma. O fundo da casa, átrio fastuoso, fica de frente ao Atelier do ilustrador. E estamos assentados eu, uma sereia e Juraci com mais alguns convivas, bons falantes por sinal – quando falavam. Os sabores dividiam ações e calavam a voz.

Feira de Santana fica a cento e poucos quilômetros de Salvador e recebe esse nome porque a cidade cresceu de uma antiga encruzilhada de rotas comerciais. Mas ainda é lugar de escambos alternativos ou clandestinos. Antes de se chegar a Salvador, fora algumas trilhas perdidas por aí, chega-se primeiro à Feira de quinhentos e pouco mil habitantes. Juraci Dórea vem da Feira de 1944 e já viu muita coisa mudar nessa vida. É artista de décadas com um acervo raro e o passaporte de diversas nações que receberam suas obras em exposições e bienais, principalmente no Velho Mundo. O que fica renitente, desde aquela data, são os humildes vaqueiros e as lamparinas de óleo das gravuras. Eleva a estética das Xilogravuras reproduzindo outro canal de desenho, às vezes mais asseado e caricato. Mas lembra a Xilo. Pra mim uma ars nova de sinestesias: o cheiro das coisas apenas olhando. Fumaça de lamparina, o couro quando molha, aroma da caatinga e o ar quente reproduzindo cores do céu. Mesmo apesar da peça ser em branco e preto. Às vezes tem outra cor ou é colorida.

Meu primeiro contato com a obra de Juraci veio em 2004 pelo caderno-livro do LP “O Auto da Catingueira” de Elomar Figueira Mello, de 1984. Juraci autora as imagens da capa. Em seguida, a convite de Simone Guerreiro, fiz a direção de arte do seu livro sobre o cantador Elomar utilizando algumas de suas ilustrações. A peça caiu muito bem na crítica de todos os autores envolvidos, o que foi suficiente. Não é, de certa forma, difícil produzir algo bom possuindo esses dois cavaleiros: Juraci e Elomar. Dois Don Quijotes figurados no campo branco[1] do Brasil. E Simone Guerreiro arremata o texto.

Amontoados de telas e uma grande mesa sustentam várias coisas no seu atelier. Livros, cadernos, pinturas, canetas e em outra bancada o computador. A máquina organiza sua vida laboriosa com as planilhas de quadros e respectivos preços. Algo importante para seu marketing mas a vida de suas telas não parece nada com isso. É pobre, simples, festeira e generosa. Juraci é uma generosidade ambulante. Oferta o que é possível, e o que não é, fica justamente por conta do pão de cada dia, da reforma da casa, das criaturas filhos que tem que prover. Ah se a vida fosse de graça, Juraci seria pão e circo. Ganhei de presente, por sinal, neste dia, dois livros. Um sobre ele – "Memória em Movimento. O sertão na Arte de Juraci Dórea" - e outro sobre um poeta de Feira de Santa – "A Poesia de Eurico Alves" – ambos de Rita Olivieri-Godet . Quando recitei “Minha Terra”, era tão bonito que, fiquei sem graça. Foi logo depois da chuva quando migramos para dentro do Atelier. Eurico está memorizado por esta escritora que permeia o mundo mexendo entre mortos e vivos, mas todos próximos.

Aguardo novos ares e encontros, da próxima vez com o agrado de canções. É algo que não dá para separar daquela ambiência dos tijolinhos aparentes da casa de Juraci do frescor da fenda entre o fundo da casa e o atelier e o calor humano de sua tenda artística. É algo bem sabido pelo próprio Elomar, Xangai, Simone e tantos outros. Mas levarei violão e canções, como quem leva tinta e pincel pra fazer umas telas por lá. Lá no fundo daqueles mil sertões, que é a casa de Juraci Dórea.

[1] Caatinga, sertão.

domingo, 11 de maio de 2008

A Deposição do Folclore

Não há coisa mais horripilante do que fazer a apologia da cultura popular, ou da cultura proletária ou sabe-se lá o que desta natureza. Há processos de singularização em práticas determinadas, e há procedimentos de reapropriação, de recuperação, operados pelos diferentes sistemas capitalísticos. Félix Guattari

Ensejo
Perdoem-me inicialmente pela gramatologia. Esse lagar densificado de termos, esse átrio imenso de falas poéticas, acadêmicas e desestruturadas, território de tantas expressões inventadas, e hora, melhor aproveitadas.

Os estudos culturais tornaram-se alvos de complexos ataques e debates intensos a cerca de conceitos que propagam idéias e defendem causas como se essas fossem tramas religiosas. O que proponho nesse pequeno texto não é isso. Ofereço, pelo contrário, certa dessacralização de termos, retirando da escravidão objetos e assuntos esmagados por determinadas menções e falas populares. Alguns desses conceitos estão enroscados de tal forma nas produções artísticas e em seus autores que a simples menção de si mesmos, ou representação, em relação a esses termos já estabelece um circuito fechado. Dizer-se ator de algo “proveniente de”, “essencial de” ou “pertencente a” traz precipitada territorialização e em seguida restrições desnecessárias.

Por exemplo, muito se fala em música regional. O inscrito “Regional” é um território complexo, ficcioso, nas palavras do sociólogo Pierre Bourdier, um espaço destinado a uma falcatrua dos espaços. A etimologia da palavra região (regio), tal como a descreve Emile Benveniste
[1], conduz a princípio da divisão, ato mágico, quer dizer, propriamente social, de diacrisis que introduz por decreto uma descontinuidade decisória na continuidade natural. Dessa forma, é possível retratar até uma expressão artística urbana como Regional. Tal definição de música Regional tornou-se lugar comum no ambiente das mídias. É quase uma luta entre identidades étnicas ou propriedades (estigmas ou emblemas) ligadas às origens através do lugar de origem dos sinais duradouros que lhes são correlativos, como sotaque, costumes, gestos, etc. São poderes simbólicos e tentativas de demarcações invisíveis. Mas então o que existe? Apenas expressões artísticas de culturas específicas. Muitas delas tem títulos interessantíssimos, tais como Mangue Beach, Cantoria Nordestina, Nova Cantoria, Música Caipira, etc. Assim como Bossa-nova é Bossa-nova. Daí, em grande parte, o regional é considerado como tudo aquilo que está fora do âmbito dos circuitos dos grandes centros ou cidades e é disponível apenas em mídias alternativas ou em iniciativas de apoios governamentais, como projetos e eventos de patrocínio a culturas artísticas e suas variadas manifestações.

Outro desconforto gira em torno do termo Folclore e tudo que este agrega. São complicados certos conceitos e práticas consideradas como “cultura nacional”, folclore, identidades, música popular, música regional e de raiz na identificação dos artistas e suas culturas artísticas. São todos termos etnocêntricos e desvirtuados da cena viva. Folclore por exemplo é uma invenção reacionária e valorativa. Um dos que mais tentam salvar o termo é Antônio Gramsci (filósofo e comunista) com abordagens fluentes, mas até então, para mim, não reagentes.
Diante de tais práticas, não é incomum observar comportamentos etnocêntricos que amplificam o grau da cultura-valor e expõem as expressões artísticas provenientes de ambientes diversos a um nonsense colonial (BHABHA).

O termo "folclore" compreende valores e noções que comprometem elementos importantes da alteridade e que são contraditórios na representação do objeto. Um desses principais problemas está na exotização das culturas. As idéias ou aspectos conceituais do folclore tecem conjunto de valores que servem como cenário para esquisitismos e exotismos, os quais, por sua vez, deixam rastros de falsas evidências sobre aspectos intrínsecos das culturas artísticas, principalmente em estudos que investigam tais manifestações. Segundo Renato Ortiz[2], configura-se em situação incômoda, e se agrava quando se sabe da preferência dos folcloristas pelo pitoresco, no qual os interesses são conduzidos para a dimensão do desconhecido, do bizarro, do curioso – “fantasmas, magias, tradições longínquas, culturas perdidas, tribos primitivas” (ORTIZ). Para o pesquisador, o folclore consiste numa “ciência menor”, que se articula à sombra de ciências legítimas tais como a sociologia, antropologia e história.

Comumente, os pontos de vista folclóricos explorados pelo conjunto social de produções culturais e da mídia atribuem valores e juízos, em grande parte, em detrimento de referências culturais ocidentais e etnocêntricas. Nesse sentido, o folclore define, segundo Canclini, os processos culturais como atividades intelectuais, restritivos a certas elites, em que, a partir de visões iluministas, exaltaram os sentimentos e as formas populares de expressão em oposição ao cosmopolitismo da literatura clássica; evidenciaram as diferenças, o valor do local, em oposição ao desprezo do pensamento clássico pelo “irracional”; trouxeram aos olhares hábitos exóticos de outros povos e de camponeses (CANCLINI). O conjunto desses argumentos termina fazendo do folclore uma disciplina que se generaliza nas expressões subalternas, orientado sob os auspícios do tato colonizador, com padrões imperialistas de enxergar as informações artísticas e culturais dos grupos rotulados como folclóricos. Uma espécie de visão do grande caçador branco sobre os costumes que se mantém quase sempre de acordo com uma tradição. O folclore trabalha segundo a concepção de “grupos de elite” que buscam despertar o povo e iluminá-lo em sua ignorância. Dessa forma, existe algo sistêmico tal como uma máquina que retroalimenta o âmbito ingênuo da cultura popular ou de raiz

O cantador Elomar, por exemplo, está incutido em acervos ou fendas culturais que consideram origens interioranas, rurais – telúricas –, ancestrais, mas não somente. Traz universo próprio, em que se mantêm expressões e costumes sobreviventes de uma memória, mas que se posiciona, na atualidade, ligada a outros movimentos artísticos musicais, temalógicos e à indústria cultural (Elomar comercializa CD´s). Sua obra ocupa lugar específico, constituído por outros artistas - cantadores - atuantes, com características peculiares que se retroalimentam. Seus atributos culturais e artísticos não podem entrar em comparação com outras manifestações, colocando-se à margem, no plano de vítimas daqueles não acolhidos por grupos que digladiam por espaços na mídia. Elomar pertence ao movimento da "Nova" Cantoria e têm articulação com culturas capitalísticas, novas mídias, formas de produção e criação. A diferença é que ele não altera seus ideais. Ele mantém sua produção cultural preferindo vencer limites restritivos da própria indústria cultural e dos fenômenos explosivos da cultura artística de massa. Enquanto isso, nos bastidores da cultura, as concepções folclóricas ou popularescas tendem a formar posicionamentos românticos e equivocados a respeito do cenário Elomariano e dos representantes da "Nova" Cantoria, na construção de um resgate do espírito antiquário (ORTIZ) e formulações reacionárias a respeito do sujeito que ali se inscreve.

O povo é “resgatado”, mas não conhecido (CANCLINI).

A intenção de divulgar esses ensaios atende a um campo dialogal desse tempo em que algumas comunidades insistem em roteirizar a dinâmica cultural dos povos e suas manifestações artísticas. Essas estruturas giram de acordo com os regimes periodistas e equivocados das análises culturais, principalmente as jornalísticas. A intenção é estender a conversação e nunca fechar os sistemas, nem possuir a certa razão. Mas sempre elucidar e abrir os campos do jogo, possibilitando outra forma de análise que desconcentra do lugar comum.

Desculpem a imensa verborréia. Amplexos malungos a todos.


[1] Émile Benveniste (1902, Cairo - 1976) foi um lingüista estruturalista francês, conhecido por seus estudos sobre as línguas indo-européias e pela expansão do paradigma lingüístico estabelecido por Ferdinand de Saussure.
[2] http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.jsp?id=K4781351Y1

sábado, 3 de maio de 2008

Macchina Fame Famulus


“(...) faça rizoma e não raiz, nunca plante! Não semeie, pique! Não seja nem uno nem múltiplo, seja multiplicidades! Faça linha e nunca o ponto! A velocidade transforma o ponto em linha! Seja rápido, mesmo parado! Linha de chance, jogo de cintura, linha de fuga. Nunca suscite um General em você! Nunca idéias justas, justo uma idéia (Godard). Tenha idéias curtas. Faça mapas, nunca fotos nem desenhos (...)” Gilles Deleuze em Mil Platôs vol. 1

Em 2006 certa dupla de empresários - Gustavo Kaufmann e Carlos Marinho (Caco) - chegaram ao antigo negócio em propaganda do qual era sócio: uma agência de publicidade. Vieram atrás de novos retratos para o restaurante (Steak House) que iriam empreender. Queriam algo aberto, inovador, amplificado, diferente. Desafiante face ao experimentalismo e tempo dispensados para desenvolver projetos como esses. Após minha sociedade desfeita continuaram sendo meus clientes. Hoje, trabalhamos construindo conceitos que são mais que idéias: são ideologias gastronômicas. O resultado inicial foi uma coleção artística de 5 painéis para o DOC que entitulei: Macchina Fame Famulus . A seguir a descrição que apresenta as peças:


“A coleção dos painéis do DOC são visagens – visões e imagens – de um mundo fantástico, surreal, cômico, gastronômico, visitado, inicialmente, apenas pelo imaginário. Mas trouxe do imaginário um apanágio real, prático, visual. É só conferir na passagem ou gastando uns segundos diante deles para compreender que estão ali, apesar de fixo, móveis. Apesar de retos: profundos, tridimensionais. A coleção Macchina Fame Famulus – um pedantismo trazido do latim, para insinuar a vaidade charmosa das palavras que preenchem a boca – ou seja, Servos da Fome e da Máquina -, propõe a aproximação, a tradução gastronômica do DOC para o estético. É puro deslumbre para os olhos, fantasia para o tempo, para a freqüência ao maravilhoso lugar preenchido pelo bem estar e finos sabores, aliciado ainda pela gravidade e rusticidade de culinária sem igual. Um cardápio exclusivos de pratos especiais e sobremesas luxuriantes. Bom apetite visual e gastronômico.”


A edição n° 270 de 2008 de Casa Vogue tem uma reportagem que publica esse trabalho e expõe suas principais aplicações sob a arquitetura de Márcia Meccia[1], elevando ainda mais o concept design da casa. A assessora de imprensa do DOC, Adriana Nogueira, recentemente me entrevistou para uma publicação que ainda não posso divulgar. Mas sob autorização de Carlos Marinho, Chef e sócio do DOC relato na íntegra a entrevista:


Adriana Nogueira: Como chegou até o DOC?
O DOC chegou até mim. Eles vieram por causa de um trabalho anterior que desenvolvi para a Forneria Quintano, de quem são amigos.

AN: Como foi construir o conceito da comunicação?
Foi denso. Um experiência de descosturas sobre coisas pré-estabelecidas. Na verdade não há nada a comunicar. Não existe uma militância pré-estabelecida para propagar idéias. É sempre a sensação, a experiência visual a partir de elementos que tem a ver com a Steak House acrescentado àqueles que reproduzem imagens de cenas e coisas cotidianas. Foi divertido também porque o conceito é muito a imagem do que os donos pensam sobre seu negócio, é um jeito de antecipar o taste, os aromas, e os designs dos pratos. Em grande parte eles são muito responsáveis pela empreitada das peças pois tiveram a ousadia de acreditar e aprovar as idéias.


AN: Com quais elementos teve que romper e que outros agregou?
A ruptura maior foi com as idéias consolidadas sobre os aspectos estéticos da gastronomia. Os empresários dessa área são muito inclinados a investirem apenas na imagem dos itens do cardápio e terminam colocando na parede os quadros dos seus pratos principais ou mais bonitos. É uma visão essencialista, óbvia. Não encanta, não provoca e às vezes sugestiona um ou outro freguês. Mas não acrescenta ou possibilita uma postura identitária, uma qualidade estética ao ambiente. Não é uma foto de comida que vai dizer que esse ou aquele ambiente representa valores, conceitos, formas de pensar, agir, produzir e etc. Os donos são jovens empresários e um deles é Chef, um artista dentro e fora da cozinha. Eles sabem o que gostam de ver. Considero que a produção estética que criei é algo que nós, eu e eles, gostaríamos de encontrar se fossemos num lugar como o DOC.


AN: Sua inspiração?
Tantas. O conceito da arte do DOC passeia entre o surrealismo – pertencente em grande parte aos movimentos de vanguarda – e o fashionismo contemporâneo, uma arte mais suja, erótica, retalhada, fusionada. Artistas como Frida Khalo, Pablo Picasso e David Carson se juntam nessa história. Mas acho que são passeios que terminam num estilo pessoal. Tem ainda a inspiração mais importante que é a filosófica. A expressão artística do DOC é repleta de agenciamentos maquínicos, reflete sobre a máquina e a tecnologia que atravessa a vida humana, mesmo enquanto este se alimenta. Na verdade o homem só interrompe a máquina para se alimentar. Mas continua sendo máquina porque já está corrompido, atravessado por esta e não se sabe mais o que é homem ou outra coisa. Dá pra entender? Risos. A isso o filósofo Deleuze chama Devir ou Devenir, que nada mais é do que um “tornar-se” ou “vir a ser” parte daquela outra coisa. Em outro contexto sempre me faço uma pergunta: “qual o propósito desse negócio?”, “Será que é vender comida?”. Cada um pode ter a sua pergunta e resposta e eu tive as minhas: “o DOC não existe apenas para fornecer um cardápio sensacional, ele existe para nos retirar do tédio da televisão”. É uma resposta insana, mas é a que eu vi quando criei o conceito. Sair de casa para ir ao DOC tem que dar mais prazer do que apenas a gastronomia, é um apanhado de circunstâncias que me animam inclusive a voltar. É um chamado ao encontro, ao prazer, ao avesso de toda preguiça.

AN: Como adequar a comunicação visual ao conceito do próprio restaurante, algo novo em Salvador, e ainda atender às expectativas dos sócios?
Acho que tudo que se faz em comunicação visual está muito banalizado na cidade. Tudo agora é chamado de sinalização ou comunicação visual. Se se faz uma placa, um letreiro ou banner chama-se isso de campanha publicitária, de comunicação visual. Eu não faço comunicação visual, eu faço peças artísticas, sem nenhuma necessidade de comunicar algo ou interpretação. E as vezes faço propaganda. Eu trabalho na perspectiva das sensações, é bem diferente, é mais forte, mais vivo, mais rentável para quem contrata. Ganhar impressões é a melhor coisa para peças publicitárias. A opção e desejo de compra sempre está no coração do consumidor. Nos seus afetos. Acho que muitos empresários desse setor ainda não acordaram para isso. Um dia desses eu presenciei uma cena muito interessante, uma pessoa posando ao lado do painel Coffea Crepuscular (Crepúsculo do Café) para tirar foto. Acho que isso disse tudo sobre o que ela achou da casa. Acho que é o arremate da satisfação, depois da boa comida, uma boa lembrança para levar.

AN: O que quis provocar e despertar nos clientes do DOC?
Fulgor, sensualidade, caos, cotidiano, alegria, clandestinidade, poesia, gravidade, suavidade, estesia, vigilância, humorismo, crítica. Mas com certeza já devem ter sentido muita coisa diferente disso.


AN: Sempre teve liberdade de criar assim?
No caso do DOC sim. Em relação a outros trabalhos nem sempre, mas também sempre dei um jeitinho de forçar um pouco a barra e mudar o rumo do processo. Na maioria das vezes consegui, outras não. Mas o tempo as vezes mostra que posso estar certo e daí refazemos os conceitos. Dá pra entender? Outros trabalhos tem uma natureza mais fechada, sem essas possibilidades, pois pertencem a setores mais austeros, corporativos. Mas se tiver uma pessoa aberta do outro lado, tudo muda.


AN: O que mais quiser acrescentar.
Nada mais a declarar. O resto está lá, tem que conferir.


[1] http://www.marciameccia.com.br